Um consórcio sem fins lucrativos baseado na Suíça anunciou
uma iniciativa revolucionária. Administrará a partir de 2020 a libra, a primeira
moeda mundial desde o padrão-ouro do século XIX.
O consórcio, em crescimento, é hoje formado por 28
empresas, tais como Facebook,
Uber, Mercado Pago, Farfetch, eBay e Visa, entre outras, que possuem mais de
2,5 bilhões de usuários no mundo.
Uma transferência de dinheiro se tornará tão simples
e imediata quanto o envio de uma foto por WhatsApp, inclusive para uma pessoa sem
conta em banco.
A libra servirá para compras do dia a dia, bem como
para transferência instantânea a qualquer pessoa ou negócio, onde estiver. Sua
lógica é a de um "token", similar às pulseiras
mágicas da Disney, nas quais se depositam dólares para gastos no parque.
O dinheiro é o que o dinheiro compra. Por essa
característica subjetiva, tem se tornado cada vez mais abstrato e virtual com o
passar dos séculos. Evoluiu de moedas físicas de ouro e prata a papel-moeda
lastreado em ouro a papel-moeda fiduciário (emitido pelo governo e sem lastro)
a dígitos eletrônicos em um terminal de caixa eletrônico, TEDs e cartões de
débito.
Desde os anos 1980, há mais dinheiro eletrônico no
mundo do que papel-moeda. O dinheiro por WhatsApp é tão somente um passo
adicional nesse lento e gradual aprofundamento da abstração monetária.
A libra é uma stablecoin,
moeda digital lastreada em ativos de curto prazo emitidos por governos ou
bancos de primeira linha, denominados em dólar, euros ou libras esterlinas.
Funciona como um currency
board, tal qual o de Hong Kong, e terá estabilidade compatível com as
moedas mais fortes.
Ao contrário do que se diz, a libra não terá
independência monetária, pois importará passivamente a política monetária dos
países cujas moedas compõem seu lastro.
A libra é a primeira grave
ofensiva tecnológica contra os bancos
tradicionais e os cartões de crédito no Ocidente. Deverá provocar uma
dramática redução dos custos de remessas internacionais, que perfazem mais
de US$ 600 bilhões por ano, e será um competidor de custo quase zero das
TEDs e das maquininhas de pontos de venda.
Adicionalmente, viabilizará microtransações e
ajudará a promover a inclusão financeira de mais de 1 bilhão de pessoas sem
acesso a bancos.
Até agora, a China lidera em pagamentos eletrônicos
na Ásia via WeChat e Alipay e está na batalha pelos
desbancarizados em outros continentes. Amazon e Google não devem ficar de fora
por muito tempo.
A despeito de o consórcio
Libra garantir que haverá uma integração segura com o atual sistema
bancário, transparência das transações e respeito às leis e às regras de
combate a lavagem de dinheiro, reguladores e alarmistas têm se levantado em
protestos, desinformação e até pedidos de suspensão dessa suposta ameaça à
"soberania monetária".
É surpreendente que haja tão pouca oposição ao
exercício do monopólio
estatal sobre nosso dinheiro, apesar dos abusos. A história milenar da
moeda estatal é um relato
deprimente sobre a diluição do metal, da inflação e do abuso da
prerrogativa de gestor exclusivo, em benefício do governo e do banco
central.
Sob o dúbio pretexto da imperiosa necessidade do
monopólio, inovações importantes têm sido sistematicamente proibidas ou
obstaculizadas.
O establishment financeiro-governamental buscará
regular a libra por todos os lados. Mas é inevitável uma eventual disrupção dos
bancos. A próxima geração possivelmente não terá contas em banco como hoje
concebemos e quem sabe usará uma moeda voluntária, sem fronteiras e
independente de governos.
Publicado originalmente no jornal Folha
de S. Paulo