A atual crise do PT, confirmada pelo recente fracasso nas urnas nas
eleições municipais, causou um significativo aumento nas ocorrências do curioso
hábito de ornamentar com belas aspas o termo "esquerda".
Os analistas políticos que se identificam com tal rótulo, mas não com o
partido, na ausência da famosa autocrítica por parte deste último, afirmam que,
com a corrupção sem precedentes, o PT teria traído a causa original.
Reconhecem, com menor frequência, que as políticas econômicas que
nos legaram a grave recessão presente prejudicaram os mais pobres, via
inflação e desemprego. Sendo assim, concluem eles, o partido não representaria a
verdadeira esquerda, sem aspas.
Seria então "pretensamente de esquerda" ou "dito de esquerda", segundo
uma variante comum do diagnóstico. Eis o fenômeno da esquerda tautológica. Algo
é "de esquerda" se, e somente se, funcionar.
O fenômeno da esquerda tautológica é uma constante da nossa discussão
política. Por duas décadas, todos os problemas do país eram atribuídos à jamais
aplicada doutrina do
neoliberalismo — sendo que os rankings de liberdade econômica mostravam
exatamente o contrário — ao passo que qualquer indicador positivo era mérito exclusivo
do governo. Não havia a elaboração de qualquer explicação para isso senão o
surreal "modelo de crescimento baseado em consumo".
A chegada do longo prazo, no final do período petista, e o reconhecimento
do fracasso da nova
matriz macroeconômica, fruto justamente de idéias heterodoxas identificadas
com a esquerda, convidaram os bem pensantes a sugerir... uma guinada ainda mais
à esquerda! Agravado pelo encolhimento do partido nas eleições municipais, o
fenômeno se intensificou. Lula, somos lembrados, afirmara
em 2006 que não era de esquerda. Outro comentarista complementa dizendo ser
errado falar que o país teria dado uma guinada à direita na eleição, simplesmente
porques o país nunca foi de esquerda — prova disso seria a adesão lulista ao
presidencialismo de coalizão.
Nos dias que se seguiram à eleição era impossível folhear um jornal sem
se deparar com pelo menos alguns exemplos de esquerda tautológica. Procure o
leitor em mecanismos de busca expressões como "pretensamente de esquerda" e
verifique por si próprio.
Nosso curioso fenômeno é tão comum que nos permite divisar uma nova lei
científica: "A Lei da Inexorável Transformação do Político de Esquerda em
Neoliberal". Na medida em que as fontes em praças públicas não jorram mel
quando a esquerda assume o poder e seus líderes descobrem que escassez não é uma ilusão
burguesa, o que exige que se preocupem com custos das escolhas e responsabilidade
fiscal, o intelectual desiludido preserva sua utopia redefinindo o que seria
esquerda.
Na história recente brasileira, nossa lei se manifestou de forma mais
evidente com o PSDB, agremiação de intelectuais de esquerda, com programa de
esquerda e que, depois de passar pelo poder, se tornou o símbolo do
neoliberalismo simplesmente por ter demonstrado alguma compreensão de que o
aumento da proporção dos gastos públicos no PIB deve de algum modo ser
financiado. A identificação das crenças tucanas com o liberalismo não merece
mais comentários do que a reação de seu patrono sociólogo: isso não passa de nhem-nhem-nhem
de neobobos.
Só que não estamos interessados em saber se expandir o estado via
tributação e endividamento em vez de por inflação monetária pode ser estratégia
classificável como liberal. O nosso interesse pela esquerda-entre-aspas repousa
no vício fundamental inerente à distinção entre esquerda e direita.
É comum dizer que essa classificação não tem mais sentido. A verdade é
que nunca teve. Da original oposição à monarquia francesa até a presente defesa
moralista do uso de bicicletas, passando pelo comunismo marxista, nada resta
que possa dar substância a tal clivagem. Com a traição perpetrada pela própria história contra o
socialismo, o determinismo
histórico virou piada, despindo de qualquer significado os rótulos 'reacionário'
e 'progressista'. Depois de um século de políticos "supostamente de esquerda"
trazerem de volta o velho
mercantilismo intervencionista, tampouco os termos conservador e
revolucionário podem servir de parâmetro: quem quer conservar ou abandonar o
estado inchado moderno?
Quanto a políticas específicas, a história das idéias políticas nos
mostra como certas bandeiras, caras à esquerda de outrora,
passaram a ser atribuídas à direita.
Como uma dicotomia vazia de significado pode ser tão atraente? É porque seu
fascínio repousa exatamente em sua vacuidade. Hayek, em Por que não sou
conservador, chamou a atenção para a pobreza da utilização de um
espectro político unidimensional, que erroneamente supõe que diversas questões
devam ser necessariamente agrupadas segundo um único parâmetro ou dimensão
política. Se levarmos em conta diversos parâmetros, as posições políticas se
dispõem em um poliedro, em cada vértice do qual habitam posições políticas próprias,
com diferenças e semelhanças em relação às demais.
O abandono de espectro de uma dimensão imediatamente dispensa falácias
como a do uso fácil da "sabedoria do meio termo". Por outro lado, se
multiplicarmos o bastante as dimensões, todas as posturas se tornariam
extremistas.
O erro fundamental da adoção do espectro unidimensional, porém, repousa
na construção de uma gigante falácia da pergunta complexa. Quando, em um
tribunal, é perguntado se o acusado se "o senhor continua batendo na sua
mulher?", tanto a resposta negativa quanto a positiva o incriminaria. Para o
acusador, é crucial que o acusado não possa responder nada que não seja "sim"
ou "não".
Do mesmo modo, a distinção entre esquerda e direita não permite que
diferentes posturas políticas sejam expressas. Tal classificação é
caracterizada pelo uso de apenas um lado do pretenso (sem aspas) espectro
político: quase todos os partidos são de esquerda. Por outro lado, qual
partido, político ou analista se definiria como de direita? Apenas por
exclusão, por se oporem aos programas e ideias daqueles que se definem como de
esquerda, existem poucos ingênuos que caem na armadilha da pergunta complexa e
se definem como direitistas e não como conservadores burkeanos, liberais
clássicos, anarco-capitalistas ou qualquer outra posição.
Seguindo o mesmo padrão, é possível encontrar um único autor que se defina como neoliberal? Não conheço
nenhum, como tampouco conheço esquerdistas que estranhem um debate em que há apenas
um lado de carne e osso.
O conflito subdialético entre esquerda e seu inimigo imaginário justifica
a piada com a qual defino esquerda: esquerdistas são aqueles que detêm os meios
de produção de falsas dicotomias.
Com essa ferramenta, a esquerda consegue realizar a mágica de transformar
doutrinas coletivistas rivais, como fascismo e socialismo nacionalista, em algo
associado ao liberalismo odiado pelos líderes desses movimentos. Em vez de
reconhecer o embuste por traz da classificação, muitos concluem, ao estudar o
fenômeno totalitário do século XX, que opostos se atraem.
Não importa, contudo, como eu defino esquerda, mas como o fazem os
próprios esquerdistas. A resposta que eu mais encontro é: "eu sou de esquerda
porque me preocupo com os pobres (ou com a desigualdade)". Embora cândidas,
essas definições revelam a natureza iliberal da esquerda. O esquerdista não se
define em termos de meios que considera adequados para conseguir resolver a
pobreza ou a desigualdade, mas em termos do próprio fim almejado. Quem não for
favorável a um partido dos trabalhadores, por exemplo, não é visto como alguém
cético em relação à eficácia das políticas propostas pelo partido, mas como um
defensor do capital e, portanto, um inimigo do trabalho.
Quando governos de esquerda geram resultados que frustram as expectativas
de seus partidários, porém, a esquerda tautológica não contempla estudar uma
doutrina política de natureza hayekiana que inclua conhecimentos da ciência
econômica — ou seja, que incorpore as consequências não-premeditadas da ação
humana. Estas forçariam o esquerdista a deixar de contemplar o mundo apenas em
termos de boas ou más intenções.
Preservando sua autoimagem de gente esclarecida e do bem, ele prefere
preservar seu maniqueísmo por meio da negação de status de esquerdista àqueles
políticos que sempre apoiou com veemência.
A causa foi traída por pessoas "pretensamente de esquerda".