N. do T.: no Brasil, a previdência social, a
saúde pública e a assistência social formam a seguridade social. Entretanto, como a seguridade social é organizada
pelo Ministério da Previdência Social e executada principalmente pelo INSS, e
como o grosso de seu financiamento vem do que é pago à Previdência, é comum
utilizar indistintamente os termos previdência social e seguridade social.
Afinal, são as contribuições para a Previdência que sustentam os gastos com a
seguridade.
Para entender melhor os conceitos
apresentados no texto a seguir, recomenda-se uma leitura prévia do seguinte
artigo: Trabalho, emprego, poupança
e capital
___________________________________
A
previdência social não é social e nem previdente. Não é social porque o sistema de
transferência provoca exatamente a dependência que prometia curar, e não é
previdente porque o abrangente sistema assistencialista moderno debilita
insidiosamente a prosperidade econômica.
Com
um sistema de transferência coerciva do ativo para o inativo, do poupador para
o consumidor, e do produtor para o governo, a previdência social tem uma
inerente tendência a destruir a formação e a transformação de capital, e a
inibir a divisão do trabalho. A
previdência social rompe o elo entre a poupança e investimento -
responsabilidade dos indivíduos - e coloca ambos nas mãos do governo. É por meio desse mecanismo que as ilusões de
riqueza - na verdade, uma pseudo-poupança - estão sendo criadas.
Em
todo o mundo, muitos esforços estão sendo feitos para tentar reformar esse
sistema de pensão estatal[1]. Algumas das reformas propostas para tornar a
previdência social um sistema solvente envolvem a incorporação de elementos
privados a esse sistema. Entretanto, uma
mudança para esse sistema de "capitalização" imposto e supervisionado pelo
governo não resolve o problema. Poupar
aplicando em títulos do governo não constitui um investimento econômico. É como conceder um empréstimo a um viciado, a
alguém que não investe e que vai gastar o dinheiro imediatamente em coisas
problemáticas.
Embora
a conexão direta entre poupança feita pelo indivíduo economicamente ativo e o
consumo desses fundos pelos recebedores diretos dessa poupança seja bastante
óbvia nos sistemas de repartição (o adotado no Brasil pelo INSS), os esquemas
de previdência baseados na "capitalização" sofrem do mesmo problema: o elo
entre poupança individual e investimento econômico está sendo cortado.
Quando
o governo obriga os cidadãos a "poupar" e "investir", seja pagando para um
sistema de repartição, seja implementando um esquema que exige a compra de
ativos financeiros (sistema esse advogado por alguns pretensos liberais), ele
provoca a ilusão de que está havendo criação de riqueza. As contribuições para esses sistemas não
constituem poupança líquida, pois estão sendo utilizadas diretamente para
transferência de renda (repartição) ou para financiar gastos do governo
("capitalização").
O
que importa para a economia é que haja poupança líquida, cujos fundos serão
utilizados para expandir, reconstruir e transformar a atual estrutura do
capital da economia, de modo a deixá-la sempre apta a atender às inconstantes
demandas dos consumidores, adaptando-se sempre às novas tecnologias e repondo o
exaurimento dos estoques. Entretanto, é
justamente a necessidade dessa contínua transformação do capital que recebe
pouca atenção em todas as propostas de reforma, mesmo naquelas que propõe
mentirosas privatizações.
Dentre
as várias escolas econômicas, a teoria econômica austríaca está praticamente só
em sua insistência em enfatizar que os problemas econômicos, e da previdência
em particular, não podem ser adequadamente compreendidos sem se dar atenção
explícita ao problema do capital: sua produção, transformação e propósito. Na perspectiva da econômica austríaca, o
capital não é um simples montante fixo denominado pela letra "K", mas um
conjunto heterogêneo de bens de produção criados pela ação empreendedorial.[2] Adicionalmente,
esse tipo de capital deve ser cuidadosamente diferenciado do capital como um
conceito contábil, para o qual, em termos monetários, a agregação e o cálculo
se tornam possíveis.[3]
Para
se ganhar produtividade, a acumulação de capital e a adaptação do estoque de
capital são uma necessidade permanente.
Esse processo de produção e consumo precisa de uma constante e contínua
formação de poupança, e requer um constante e contínuo investimento
econômico. Mesmo que um alto estoque de
capital tenha sido acumulado no passado, a produtividade irá declinar caso não
haja um constante aperfeiçoamento. Sem
uma poupança suficiente para permitir uma contínua transformação dos bens de
capital, a produtividade irá declinar rapidamente.
Todos
os tipos de sistemas de pensão enfrentam o dilema de que os bens de consumo
atuais devem ser produzidos praticamente ao mesmo tempo que o ato do consumo,
como ocorre com a maioria dos serviços.
Mesmo para os chamados bens duráveis, os recursos de armazenagem são
bastante limitados. Os bens desaparecem
no processo de consumo e se desgastam durante seu uso. Os insumos são necessários para o processo de
produção e a deterioração dos bens de capital ocorre estejam eles em uso ou
não. Nenhum dos dois sistemas
previdenciários - o de transferência ou o de "capitalização" - irá gerar os
pagamentos esperados caso não haja um aprimoramento constante do capital da
economia.
Sob
a hipótese de que a parte inativa da população gasta com consumo a maior parte
da renda que lhe é transferida, a poupança pessoal que advém do grupo
economicamente ativo nunca é de fato poupada em termos econômicos, mas dirigida
para o consumo. Esse é o caso quando
ocorre "investimento" em títulos do governo.
O absurdo aqui é que os poupadores estão aparentemente ficando mais
ricos com a absorção de cada novo título emitido, e, quando o governo eleva sua
dívida, aparentemente uma nova etapa de criação de riqueza foi atingida. Insensatez total.
Cada
crédito financeiro necessariamente possui uma obrigação financeira como
contrapartida. O comprador que adquire
um título do governo diretamente (ou indiretamente por meio de seu programa de
pensão) está poupando no sentido de que está se abstendo individualmente do
consumo imediato; mas não está havendo uma poupança líquida quando o governo
transfere esses fundos para gastos e assistencialismo. Nesse sentido, não há diferença econômica
fundamental entre contribuições para a previdência social ou para uma
previdência privada, mesmo que o sistema de capitalização permita a compra de
ações.
Certificados
de ação não constituem riqueza econômica; riqueza é aquilo que as ações
representam: a capacidade produtiva das empresas. Somente na medida em que os preços das ações
facilitam novas ofertas públicas e novas emissões de ações, é que se pode dizer
que operações na bolsa contribuem para a formação de capital. Comercialização de ações é uma pré-condição
necessária para a divisão da propriedade do capital; porém, alegar que os
mercados financeiros criam riqueza é dizer que o rabo é quem abana o
cachorro. Não há nenhuma ligação direta
entre os números nos índices da bolsa e a capacidade produtiva da
economia. Não obstante os preços das
ações e das debêntures possam estar atingindo cotações e preços recordes, a
base produtiva da economia pode estar se erodindo, e vice versa.
Um
país que tenha de lidar com uma crescente porção de idosos não pode, em
qualquer sentido econômico, fabricar os bens e serviços muito antecipadamente
ao momento do consumo, mas deve providenciá-los passo a passo em conformidade
com o surgimento da demanda. O capital
não é como uma árvore que cresce por conta própria e a cada ano fornece as
maçãs para serem consumidas. A produção
econômica necessita de um constante financiamento, guiado pela atividade
empreendedorial.
Somente
uma economia monetária com um alto grau de divisão do trabalho fornece a
oportunidade para que o indivíduo poupe sem um limite de tempo específico. Uma correta divisão do trabalho permite que
haja a troca interpessoal do tempo de espera.
Sem essa divisão do trabalho e sem essa troca do tempo de espera, as
possibilidades econômicas propiciadas pela poupança ficariam limitadas a um
curto espaço de tempo. Para que haja
sempre um fluxo de bens disponíveis para o consumo, o capital deve estar em
constante uso; e para que se mantenha a produtividade, tornam-se necessários a
adaptação e o constante aperfeiçoamento do capital. Sob essa perspectiva, toda a atividade
econômica se baseia no sistema previdenciário de repartição ("pay-as-you-go"). E para que o processo de produção seja
mantido, poupança e investimentos contínuos são necessários.
A
atividade econômica, e particularmente o processo de produção demorado e
indireto, requer o financiamento contínuo das pessoas empregadas na produção.[4] O processo de
produção indireto aumenta a produtividade, mas a viabilidade desse processo de
produção vai depender do tamanho do financiamento necessário para sustentá-lo -
e se tal financiamento é possível.
Dentro
do sistema da divisão do trabalho, a troca interpessoal ocorre entre poupadores
e investidores. Assim, uma poupança
intertemporal e de longo alcance pode ocorrer.
Entretanto, quando há uma previdência social pública, o governo retira a
poupança da parte ativa da população e transfere o dinheiro para a parte
inativa da população, sem que haja qualquer compromisso ou contrato explícito
entre ambas as partes.
Enquanto
a porção que chega às mãos dos recebedores dessa transferência social de renda
for relativamente pequena, o processo de formação de capital, embora
enfraquecido, pode continuar. Haverá,
entretanto, um ponto de virada quando a fatia que for para os recebedores se
tornar maior e deixar cada vez menos fundos disponíveis para o aprimoramento da
capacidade produtiva da economia. Nesse
ponto, a escassez de financiamento será tão aguda que passará a haver um
consumo de capital.[5]
Os
esquemas modernos de previdência social são concebidos como sistemas de fluxo
financeiro. Eles regulam o fluxo de
fundos financeiros que sai da parte "ativa" da população e vai para a parte
"inativa": intermediando as transferências entre os jovens e os idosos, os
saudáveis e os doentes, e com pagamentos assistencialistas dos ricos para os
pobres. É óbvio que tal sistema é
insustentável no longo prazo e está rumo a uma crise, dado que a proporção
entre essas duas partes está se alterando desequilibradamente: uma parte ativa
cada vez menor em relação a uma crescente fatia da parte inativa da população.
Quando
os encargos se tornarem muito altos para a população ativa, aqueles que estão
na margem irão optar por se tornar inativos, particularmente quando os benefícios
nesse lado se tornarem mais atraentes.
Dessa forma, sistemas de transferência social de renda ampliam o número
de necessitados e reduzem a fatia da população ativa.
Com
essa mudança induzida em direção a uma maior dependência, as taxas de contribuição
da parte ativa da população terão de aumentar, e consequentemente haverá cada
vez menos fundos para manter e aprimorar a base produtiva da economia. A expansão do sistema de transferência social
debilita as fundações sobre as quais se assenta todo o sistema econômico. Com a destruição da sua própria base
econômica, a previdência social produz sua permanente crise financeira.
Propostas
de "privatização" ou "contas pessoais" não irão resolver o problema. Quando um sistema é implantado para obrigar
as pessoas a poupar comprando títulos do governo, está-se criando apenas mais
uma das muitas ilusões de riqueza e seguridade.
Embora o contribuidor possa acreditar que sua fatia "poupada" ajudará a
criar uma futura prosperidade, é o governo quem irá gastar imediatamente a
maior parte desses fundos, em sua folha de pagamento e com assistencialismo. Esses sistemas de "capitalização" promovidos
pelo governo são diferentes dos sistemas tradicionais de repartição apenas na
aparência, uma vez que nestes últimos as contribuições são diretamente
transferidas para os inativos.
Para
que houvesse tal "privatização", seria necessário um período de transição,
durante o qual a parte ativa da população teria de lidar com o dobro dos
encargos. Consequentemente, tais sistemas
de capitalização iriam requerer que a base de contribuidores fosse ampliada e
que cada vez mais cidadãos fossem obrigados a entrar nesse sistema oficial de
transferência.
Sistemas
de capitalização coercivos não eliminam o ciclo vicioso que é inerente ao
estado assistencialista. Nesse ponto jaz
a contradição lógica do atual estado assistencialista: seu defeito está em sua
inerente tendência a solapar sua própria base econômica. A solução não é a reforma do estado
assistencialista, mas seu desmantelamento.
A cura para o sistema não é sua reforma, mas seu fim.
Não
importa se o sistema é de repartição ou de capitalização: com ambos os
mecanismos o governo impõe um "contrato" anônimo sobre os cidadãos. E com uma seguridade social para os mais
velhos, o governo impõe esse contrato sobre uma abstrata geração futura. Dessa forma, um mecanismo burocrático é
implantado como substituto para a divisão do trabalho dentro da família e
dentro da sociedade, quebrando os laços naturais que existem dentre as gerações
das famílias e dentre toda uma comunidade.
Assim, a seguridade social contribui para a erosão da família nas
sociedades modernas e para o desaparecimento da solidariedade privada e
espontânea.
A
intenção original da seguridade social no século XIX era ser um programa muito
limitado voltado para integrar a classe operária ao estado. Dos anos 1930 até os anos 50, tornou-se
popular a crença de que o capitalismo só poderia sobreviver de uma forma
amputada, na forma de uma economia mista ou como economia social de
mercado. Na segunda metade do século XX,
as ideias de "justiça social" e "solidariedade" tornaram-se dominantes, e foram
esses conceitos que abriram definitivamente a caixa de Pandora para os cada vez
maiores gastos com benefícios sociais.
Ao
fazer da "justiça social" um objetivo da atividade governamental, qualquer
pessoa poderia ser definida como desprovida e necessitada, e em nome da
"solidariedade" qualquer pessoa na sociedade deve ser considerada uma
contribuidora em potencial. Com cada vez
mais grupos sociais se transformando em objeto de políticas sociais, a ponto de
praticamente cada indivíduo da sociedade ter se tornado parte de um grupo ou de
outro, essa política perdeu completamente qualquer vestígio de orientação
sensata. Uma vez que a justiça social se
transforma no objetivo da política, o caminho para a expansão ilimitada do
governo está aberto.
Com
a expansão do estado assistencialista, as razões originais para o
estabelecimento de um sistema de seguridade social já foram há muito engolidas por
interesses político-partidários, por grupos de propaganda, e pela difusão da
crença entre os beneficiários de que eles têm um direito inalienável aos
benefícios. O moderno estado
assistencialista não mais está voltado para ajudar os pobres ou para servir de instrumento
de integração, tendo se tornado um sistema que representa fielmente a máxima
expressada por Frédéric Bastiat: "O estado é a grande ficção por meio da qual
todos querem viver à custa de todo o resto".
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Notas
[1] Ver o
estudo do Banco Mundial "Old-Age
Income Support in the 21st Century: An International Perspective on
Pension Systems and Reform". The World Bank: Washington 2005 (http://www1.worldbank.org/sp/incomesupport.asp)
[2] Ver Israel
M. Kirzner: An Essay on Capital. New
York 1966 along with F. A. Hayek: The Pure Theory
of Capital. London
191 and L.M. Lachmann: Capital and its Structure. London 1956.
[3] Ludwig von Mises, Ação Humana. Auburn: The Mises Institute, 1998, p. 517.
[4] Foi principalmente Böhm-Bawerk em seu Capital and Interest (1884) quem
elaborou a conexão entre capital, consumo e financiamento em termos de espera e
tempo. Ver também Richard von Strigl,
que em seu Capital and Production
(Auburn: The Ludwig von Mises Institute 2000) elaborou o conceito no contexto
da depressão da década de 1930. Para uma
exposição didática dos fundamentos micro desse conceito, ver Frank Shostak: The Subsistence Fund;
ainda uma das melhores introduções a este assunto pode ser encontrada nos
ensaios de Frank A. Fetter: "Capital, Interest, and Rent. Essays in the Theory of
Distribution"
(1977 Menlo Park, Cal.)
[5] Isso se aplica também a empresas privadas na medida em
que elas pratiquem "políticas corporativas sociais".