segunda-feira, 5 dez 2022
No mundo desenvolvido, é cada vez maior o apelo
sedutor exercido pela Teoria
Monetária Moderna (TMM).
Nos EUA, a ala mais à esquerda do Partido Democrata,
capitaneada pela deputada Alexandria
Ocasio-Cortez (que é declaradamente
socialista), passou a defendê-la
vigorosamente. Websites progressistas como o Huffington Post estão na linha
de frente da batalha. Na Europa, a teoria vai ganhando tração
nas universidades.
A teoria, no entanto, é bastante confusa, pois nem
mesmo seus defensores são capazes de resumi-la de maneira homogênea e coerente.
Eles utilizam termos convencionais de maneiras nada convencionais, o que apenas
cria ainda mais confusão. Para piorar, o que exatamente seria a TMM é algo que
vai mudando continuamente ao longo do tempo, o que apenas adiciona frustração à
confusão.
Ainda assim, é possível apontar qual seria o cerne
da TMM.
1) A teoria afirma que nenhum governo que emite a própria
moeda pode se tornar insolvente.
Consequentemente, não é problema o governo
continuamente gastar mais do que arrecada — o que faz sua dívida aumentar
continuamente —, pois o governo sempre pode "imprimir dinheiro" (ou, em termos
técnicos, monetizar seus déficits) para bancar seus gastos crescentes.
2) A teoria monetária padrão afirma que tal política
inflacionária causa aumento de preços. Já a TMM afirma que não, pois há "recursos
ociosos".
3) Mesmo nas situações em que os defensores da TMM
admitem que a impressão de dinheiro poderia gerar aumento de preços — por
exemplo, quando a economia está em pleno emprego —, a solução apresentada para
impedir este aumento de preços é aumentar impostos.
4) Para a TMM, impostos servem não para o governo arrecadar
dinheiro para bancar seus gastos — a impressora de dinheiro é que faz isso —,
mas sim para enxugar dinheiro da economia e, com isso, arrefecer a demanda e
evitar uma subida nos preços.
Em suma: de acordo com a TMM, o governo deve
imprimir dinheiro para bancar seus gastos e, caso isso pressione os preços para
cima, ele deve retirar dinheiro do setor privado por meio de maiores impostos. Tal
medida — afirmam os defensores da teoria — manteria os juros continuamente
baixos, a dívida pública estaria para sempre sob controle, a economia cresceria
continuamente, e não haveria inflação de preços.
Quem poderia ser contra?
Obviamente, como disse o economista Robert Murphy em
artigo demolidor sobre
a TMM: "De um lado, o governo imprime dinheiro e, consequentemente, obtém
todos os bens, serviços e mão-de-obra que deseja; de outro, ele aumenta
impostos para retirar esse mesmo dinheiro da economia, asfixiando ainda mais o
setor privado e retirando seu poder de compra. A TMM, portanto, é um esquema
vicioso inventado para que o governo sempre possa ganhar e para que setor
privado sempre saia perdendo."
Com efeito, uma observação realista sobre como funciona
a política permite a conclusão de que recorrer a aumento de impostos não irá resolver a inflação de preços,
pois o governo continuará incorrendo em déficits orçamentários para bancar seus
gastos crescentes. E estes déficits, obviamente, serão financiados com
impressão de dinheiro.
Consequentemente, sob a TMM, o setor privado irá
encolher progressivamente em relação ao setor estatal, pois tanto a inflação monetária quanto o subsequente aumento de
impostos para contrabalançar o aumento de preços causado por esta inflação
monetária irão retirar
recursos do setor privado e direcioná-los para o estado.
A
experiência argentina
Mas vamos à prática.
Podem os governos incorrer em amplos déficits
fiscais financiados pela impressão de dinheiro sem gerar significativa inflação
de preços?
A experiência argentina
coloca em xeque esta ideia.
Como mostrado na figura abaixo, a Argentina vem apresentando
um crônico déficit fiscal durante os últimos 50 anos (com a exceção de alguns
anos após a crise de
2001). A área vermelha mostra déficit fiscal consolidado (todos os níveis de
governo) como porcentagem do PIB nominal. A linha azul (começando em 1993, pois
não há dados anteriores) mostre apenas o déficit fiscal do governo federal, também
como fatia do PIB nominal.
Quem está familiarizado como a história da Argentina
sabe que todos estes déficits se degeneraram em numerosos problemas, como hiperinflação,
calotes e crises cambiais.

Vale ressaltar que todos os déficits acima — com a exceção dos da década
de 1990, quando o país vivia sob um Currency
Board heterodoxo — foram financiados com a criação de dinheiro pelo
Banco Central argentino.
Quais foram alguns dos efeitos desta política de déficits
fiscais constantes?
Houve ao menos quatro episódios de calote da dívida (os
pontos amarelos no gráfico). Uma grave crise, conhecida como "Rodrigazo"— quando o dólar encareceu
160% em um só dia, em decorrência exatamente da expansão monetária —,
contribuiu para o ambiente social que culminou com imposição de uma ditadura
militar que governou o país entre 1976 e 1983.
Com a exceção da década de 1990, quando o país tinha
um pseudo-currency board (e, consequentemente,
havia restrições sobre sua capacidade de imprimir dinheiro), a Argentina
vivenciou taxas de inflação extremamente altas durante todo o tempo. Como os gráficos
têm que ser quebrados para dar conta da inflação exponencial, confira aqui,
aqui,
aqui,
aqui,
aqui,
aqui
e aqui.
Para culminar, a Argentina vivenciou uma hiperinflação
(quando os preços sobem mais de 80% ao mês)
no final da década de 1980 e início da década de 1990 (quando a inflação de preços
chegou a módicos 20
mil por cento) e uma grande depressão em 2001. E, desde 2011, o país
vivencia uma estagflação.
Sem nenhuma surpresa, a taxa de pobreza (as quais os
déficits fiscais supostamente devem reduzir) não apenas permaneceu alta, como
só fez crescer (tendo caído
fortemente em meados da década de 1990, após a implantação do pseudo-currency board).
É difícil imaginar como um defensor da TMM
explicaria favoravelmente a experiência da Argentina. O país sempre teve
liberdade para emitir sua própria moeda (com a exceção de um curto período na década
de 1990) e para emitir dívida em sua própria moeda.
No entanto, e de novo, qualquer indivíduo minimamente
familiarizado com o funcionamento da política sabe que um país cujos políticos têm
liberdade para monetizar os déficits do governo não poderá continuar emitindo
dívida por muito tempo, pois ninguém irá querer comprar um título que será saldado,
no futuro, com uma moeda sem valor nenhum. (Para outro exemplo prático, vide a Venezuela).
Em outras palavras, é difícil imaginar que um país
seja capaz de emitir dívida em sua própria moeda por muito tempo se ele estiver
incorrendo em déficits financiados pela impressão de dinheiro, como defendem os
proponentes da TMM.
Sempre que apresentados a este argumento, os
seguidores da TMM rebatem dizendo que, se a inflação começar a ficar fora de
controle, o governo deve aplicar contra-medidas. Na prática, a TMM diz que ele
deve aumentar impostos.
Meu lado cínico diria que isso já foi feito e
fracassou miseravelmente: a Argentina possui hoje a
maior carga tributária entre as 138 maiores economias do mundo. Ao mesmo
tempo, a inflação de preços segue batendo recordes (50%
no acumulado de 12 meses).
Ou seja, o aumento dos impostos (que já estão em nível de recorde mundial) nada fez para conter a inflação de preços causada pela forte expansão monetária (a qual ocorre majoritariamente para financiar os déficits do governo).
Mas tal refutação prática ainda é o de menos. Ao sugerirem que os governos poderiam simplesmente adotar contra-medidas quando a inflação de preços
acelerar, os proponentes da TMM demonstram ignorar completamente a questão dos
incentivos econômicos e políticos: não há nada que obrigue os políticos a
fazerem isso. Há apenas a esperança e o desejo de que irão fazer, mas nenhuma
medida prática que os obrigue a tal. (E, mesmo que realmente fizessem, nada indica que tal medida
seria efetiva).
Sendo assim, os proponentes da TMM confundem o possível
com o provável; o desejo utópico com o mundo real.
Conclusão
A experiência prática argentina — houve criação de
dinheiro para financiar déficit em conjunto com um grande aumento de impostos
— nos fornece motivos para duvidar da relevância prática da Teoria Monetária Moderna.
Assim como os proponentes da TMM, os políticos argentinos
sempre acreditaram que os déficits não importam, e que, consequentemente, as restrições
orçamentárias não são realmente restritivas.
No final, ao subestimarem os custos dos déficits orçamentários
e as consequências da monetização destes déficits, os proponentes da TMM
permitem que políticos — mesmo aqueles eventualmente portadores das "mais
nobres intenções" — implantem medidas que irão, no final, reduzir o padrão de
vida dos mais pobres da sociedade.
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Leia
também:
O tenebroso conto de fadas
da Teoria Monetária Moderna - e de André Lara Resende
"Governos nunca quebram,
pois podem imprimir dinheiro!", dizem. A Venezuela prova o contrário