segunda-feira, 19 fev 2018
Com frequência, nos
debates sobre economia e política, é comum acusar os defensores do liberalismo econômico
de querer "fazer um ajuste em cima dos pobres", ou, uma variante, "querer que
os pobres paguem pelo ajuste". Ou, ainda mais comum, "impor um arrocho ao povo".
De certa maneira, é necessário
fazer um mea culpa: talvez tenhamos
alguma responsabilidade por passar essa imagem, dado que, se estamos analisando as contas
públicas e estas apresentam um buraco, prontamente dizemos que há um "desajuste"
que tem de ser "ajustado".
Neste sentido, igualmente,
a palavra 'ajuste' não tem nada de mau ou de pejorativo. Ela simplesmente
decorre do fato de que se você está trilhando um caminho que você sabe que irá terminal
mal, você tem de corrigir, de ajustar.
Ajustar um parafuso solto não
é algo ruim em si mesmo. Com efeito, é o contrário: o ajuste pode impedir
acidentes fatais. Logo, qual seria o problema?
No entanto, o que os
supostos defensores dos pobres e porta-estandartes do proletariado querem dizer
quando associam liberalismo (ou, pior ainda, "neoliberalismo") a
ajuste fiscal é que os defensores do liberalismo econômico querem "fazer ajuste
em cima dos trabalhadores", reduzir seus salários, aumentar o desemprego e "afetar
o social" — e tudo isso apenas com o mesquinho objetivo de equilibrar as
contas públicas.
Por esta retórica, o
liberalismo econômico (ou, como erroneamente dizem tais pessoas, o "neoliberalismo") é o
grande inimigo do povo, ao passo que o populismo, o socialismo e o estado de
bem-estar são os verdadeiros heróis da "sensibilidade social".
Contradição em termos
Feito o mea culpa sobre o uso da palavra ajuste,
resta claro que há dois sentidos para o termo: um se refere a corrigir desequilíbrios,
e o outro, a piorar a qualidade de vida das pessoas.
Neste último sentido,
liberalismo econômico e ajuste são claramente antônimos. Ou seja, um é
exatamente o oposto do outro, por definição.
Apenas pense no que
significa liberalismo. Liberalismo vem de liberdade, o que implica que as
pessoas devem ser livres para perseguir seus sonhos. E, desde que não agridam terceiros, elas devem ser livres para buscar
seus objetivos sem serem coagidas e sem serem restringidas por burocracias e regulamentações.
No âmbito da economia, essa liberdade é o que gera os incentivos para
empreender, produzir mais e aumentar a riqueza. A liberdade econômica, por definição,
é uma amplificadora da
criatividade e do empreendimento humano.
A liberdade está
intimamente relacionada à propriedade privada. E quando a propriedade privada é
respeitada, empreendedores se arriscam mais e investem mais, consequentemente criam
mais negócios e empresas que oferecem bens e serviços. E se estes bens e serviços
satisfazem as demandas dos consumidores, os empreendedores estão criando
riqueza. Por definição.
Se isso ainda não bastasse,
vale lembrar que, como efeito colateral, tudo isso aumenta a demanda por mão-de-obra.
Consequentemente, maior produção e maior demanda por trabalhadores fazem subir
os salários em termos reais. Logo, o padrão de vida da população aumenta.
E nada disso é um conto de
fadas ou uma mera ginástica mental. De acordo com a última publicação do Índice de
Liberdade Econômica da Heritage Foundation, os países mais livres do mundo
possuem uma renda per capita 7,5 vezes maior que a dos países considerados "reprimidos",
como Argentina e Brasil.

Gráfico 1: renda per capita e liberdade econômica (quanto
mais à direita, mais economicamente livre). Fonte: 2018
Index of Economic Freedom – The Heritage Foundation
Ainda assim, seria possível argumentar — e
corretamente — que a renda per capita é uma medida que, em geral, não é indicativa
do bem-estar de uma sociedade e que, por isso, a relação acima não é tão assombrosa.
Entretanto, a liberdade econômica não apenas está
correlacionada à renda per capita, como também ao Índice
de Desenvolvimento Humano, da ONU (os países mais economicamente livres têm
uma média de 0,93 ponto, e os mais economicamente reprimidos, de 0,57 ponto).
Adicionalmente, os países que mais medidas tomaram
para aumentar a liberdade de criar e de empreender de seus cidadãos de criar e
de empreender — reduzindo impostos, burocracias, regulamentações, subsídios, distorções
e tarifas protecionistas — foram os que acabaram
crescendo mais acelerada e continuamente, algo que se relaciona diretamente
à queda na pobreza.

Gráfico
2: melhora na liberdade econômica e taxa de aumento da renda per capita durante
três intervalos de tempo. A primeira coluna (1st) representa o grupo de países com
maior renda per capita; a segunda coluna (2st) representa o segundo grupo, e
assim sucessivamente. Os números sobre cada coluna indicam o aumento na
liberdade econômica ocorrido em cada grupo de países. Fuente: 2018 Index of Economic Freedom – The Heritage Foundation
Vistos estes dados, como se pode falar de
liberalismo como sinônimo de ajuste? A liberdade econômica é exatamente o oposto
de um arrocho sobre os trabalhadores. A liberdade econômica é o ingrediente necessário
para estimular a iniciativa empreendedorial, fomentar o crescimento econômico e,
com isso, aumentar os salários e reduzir a pobreza.
O
populismo é o verdadeiro ajuste
Tendo deixado claro que liberalismo econômico nada
tem a ver com "ajuste", no sentido de reduzir os salários dos trabalhadores, vejamos
agora o que é que realmente causa o arrocho.
É aqui que lidamos com outra coisa muito distinta: o populismo.
Ao final da década de 1980, dois acadêmicos de
prestígio internacional compilaram várias experiências econômicas de países
latino-americanos em um estudo que intitularam "O populismo macroeconômico na América
Latina". (Veja um artigo
inteiro sobre isso).
Para Rudiger Dornbusch e Sebastián Edwards, o
populismo macroeconômico, mediante o uso de "políticas fiscais e creditícias
expansionistas (...) busca, a todo custo, o crescimento e a redistribuição de
renda no curto prazo" ao mesmo tempo em que "menospreza os riscos da inflação e
dos déficits orçamentários do governo, do protecionismo, das restrições externas
e da reação adversa dos agentes econômicos perante essas políticas agressivas e
anti-mercado".
Segundo os autores, o populismo econômico possui um
caráter autodestrutivo, uma vez que seus problemas, ao serem subestimados,
acabam por gerar grandes retrações da renda
per capita, dos salários
reais e do poder de compra dos trabalhadores, prejudicando principalmente
aqueles a quem o governo mais queria beneficiar.
Talvez o mais interessante da análise de Dornbusch e
Edwards seja sua classificação do populismo econômico em 4 etapas.
Na primeira etapa, com a economia relativamente
arrumada, as políticas fiscais e monetárias expansivas geram um crescimento da
produção, do emprego e dos salários reais.
Na segunda etapa, vários gargalos começam a
aparecer. A inflação aumenta de maneira significativa. O déficit fiscal do
governo piora em decorrência dos subsídios do governo aos seus setores
favoritos e do congelamento das tarifas de energia, gasolina e demais serviços
públicos (o que gera necessidade de repasses para essas empresas). A
desvalorização cambial ou o controle do câmbio se tornam inevitáveis.
Na terceira etapa, os problemas se tornam
explícitos: escassez de produtos, inflação de preços em disparada, fuga de
capitais, acentuada desvalorização cambial e, no extremo, escassez de dólares.
Consequentemente, com a queda nos investimentos e com menos capital investido
per capita, os salários reais inevitavelmente caem e o crescimento econômico se
estanca e entra em contração.
Na etapa final, o que normalmente ocorre é a
implantação de um plano "ortodoxo" de estabilização, que buscará
corrigir os desequilíbrios na economia para que os investimentos retornem e a
produção volte a crescer.
Um novo governo é eleito (ou o próprio governo é
reeleito; ou um novo governo assume em decorrência da deposição do atual) e é
obrigado, por necessidade, a fazer esses ajustes, possivelmente sob a
supervisão do FMI ou de organizações internacionais que forneçam os fundos
necessários para fazer as reformas econômicas (isso ocorre majoritariamente
quando o país precisa de recompor suas reservas internacionais).
Em suma: o populismo nada mais é que um conjunto de políticas
insustentáveis que, no médio a longo prazo, geram distorções que
inevitavelmente afetam os investimentos e eliminam os incentivos para
empreender, produzir e crescer.
Os dados compilados pelos autores são contundentes. Em
todos, observa-se o mesmo padrão: de início, o populismo faz com que os salários
reais aumentem, pois vários preços estão congelados (e subsidiados) ao mesmo
tempo em que está havendo uma grande expansão monetária. Há mais dinheiro na
economia (mais gastos e maiores salários), mas vários preços estão controlados
(e subsidiados).
Com o tempo, os desajustes econômicos (explicados
acima) se tornam visíveis demais para continuarem ignorados, o que dá início ao
ajuste.

Gráfico 3: salário real no Chile (1967-1977). Fonte: Macroeconomic Populism in Latin America. NBER
Working Paper No. 2986

Gráfico 4: salário real no Peru (1980-1989).
Fonte:
Macroeconomic Populism in Latin America. NBER Working Paper No. 2986
E, agora, um caso bem
mais recente: a Argentina de Cristina Kirchner (até novembro de 2015) e Maurício Macri (a partir de dezembro de 2015).

Gráfico
5: salário real na Argentina (2013-2017). Fuente: Ministerio de Trabajo e
IPCBA.
E o caso do Brasil:

Gráfico 6: evolução do salário real no Brasil (março de 2012 a dezembro de 2017). Fonte: Banco Central com dados do IBGE
O populismo sempre privilegia o curto prazo em
detrimento do longo prazo. Ao fazer isso, são implantadas políticas econômicas nefastas,
como inflação monetária, déficits fiscais, controle de preços, aumento das regulações,
fechamento do mercado externo, subsídios às indústrias favoritas do governo
etc. Tudo isso pode, no curto prazo, gerar uma ilusão de bem-estar, como se
observa nos gráficos acima. No entanto, o colapso final é inevitável.
Para Edwards e Dornbusch, a fase inescapável do
populismo macroeconômico é a da estabilização ortodoxa, em que realidade vem à
tona, o salário real cai, a inflação de preços dispara (pois os preços até então congelados são finalmente
liberados) e a economia entra em recessão.
Obviamente, se a estabilização é bem-sucedida e o
populismo é abandonado, o país volta a crescer.
Conclusão
Ao final, de quem é a culpa pelo ajuste e pelo
arrocho? Daquele que simplesmente descortinou o véu das mentiras ou daquele que
insistia em tentar revogar as leis básicas da economia?
O ajuste — ou "arrocho" — em cima dos
trabalhadores não é de responsabilidade do liberalismo econômico, mas sim uma consequência
inevitável do populismo. Nos países mais economicamente liberais, a economia
cresce mais e a renda das pessoas é a mais elevada de todas.
Já onde viceja o populismo, os salários crescem
apenas no curto prazo, e sempre à custa de caírem acentuadamente no médio-longo
prazo, em consequência da inflação, da destruição de capital, e de queda dos
investimentos.
Que fique claro: liberalismo econômico não é ajuste
e nem arrocho; ajuste e arrocho são as consequências inevitáveis do populismo.
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