A primeira-ministra alemã Angela Merkel venceu sua quarta
eleição consecutiva no dia 24 de setembro de 2017, e com uma ampla
diferença em relação ao Partido Social
Democrata (37,2% contra 24,6%).
Embora o resultado não possua uma explicação unicamente
econômica — a crise
dos refugiados provavelmente motivou a perda de
aproximadamente um milhão de votos do CDU (Partido Democrata-Cristão, de
Merkel) em favor do nacionalista AfD (Alternativa para a Alemanha) —, grande
parte dos motivos está sim na economia.
A atual chanceler foi eleita pela primeira vez em
novembro de 2005, apenas um ano e meio antes do início da grande recessão
assolou o mundo desenvolvido. Ou, dito de outra maneira, seus três mandatos à
frente do Executivo alemão ocorreram durante uma grande crise econômica
mundial. Não
obstante, a chanceler triunfou em quatro eleições.
A razão desta resistência do Partido Democrata-Cristão à
crise está no fato de que a economia alemã se comportou notavelmente bem
durante a última década: desde 2007, o PIB real da Alemanha aumentou 13,5%, a inflação de preços, na média, permaneceu em apenas 1,3%
ao ano, foram criados 4,5
milhões de novos empregos, e a taxa de
desemprego caiu para seu nível mais baixo desde 1980, situando-se
em 3,6%.
Quando se compara esta evolução da Alemanha com a de
outros países ocidentais, o resultado é claro: o país de Merkel foi o que,
disparadamente, mais viu a renda per capita de seus cidadãos aumentar.

E, caso alguém pense que essa robustez da Alemanha
durante a última década se deva ao fato de ela não ter sido afetada pela crise
— a qual, por algum motivo, teria atacado com dureza EUA e toda a Europa, mas
não a Alemanha —, a realidade é que o país teutônico foi um dos que mais viram
seu PIB desabar durante a recessão de 2009. E com muito mais intensidade que
EUA, França e até mesmo Espanha.

Ou seja: o bom comportamento da economia alemã não se
deveu ao país não ter sido atingido pela crise — pois o foi, e fortemente —,
mas sim por causa de sua formidável capacidade de readaptação para fazer frente
a esta crise.
E a que se deveu tamanha capacidade de readaptação?
Tudo começou
antes de Merkel
Até
meados da década de 2000, a Alemanha era considerada uma das nações mais
doentes da Europa. Com uma economia engessada e um mercado de trabalho pouco
flexível, sua taxa de desemprego era persistentemente alta (chegando
a 12%, maior até mesmo que
o da França à época). E, por causa dos gastos
crescentes do governo, o déficit
orçamentário não só era um dos maiores da
Europa, como também estava à beira do descontrole.
Foi
neste cenário que o então primeiro-ministro, o social-democrata
Gerhard Schroeder, que ficou no cargo de 1998 a
2005, resolveu adotar várias medidas que desagradaram em cheio a sua base de
apoio: chamada de Agenda 2010, Schroeder atacou o então generoso estado de bem-estar social
alemão, fazendo cortes em vários programas como seguro-desemprego (cuja
concessão se tornou bem mais rigorosa e a duração foi encurtada), previdência e
até mesmo na saúde.
Mais:
flexibilizou o
mercado de trabalho e reduziu as alíquotas
do imposto de renda de pessoa jurídica (de
56,8% para 38,7%; hoje está em
29,7%, menor que a brasileira, que chega a 34%.). Reduziu também
a alíquota máxima do imposto de renda de pessoa física (de
57% para 44,3%).
Schroeder,
talvez por ter adotado tais medidas impopulares já no final de seu mandato —
janeiro de 2005, sendo que as eleições seriam em novembro daquele ano —, não
apenas não colheu os frutos de suas reformas, como ainda foi punido pelos seus
eleitores — majoritariamente sindicatos e defensores do estado
assistencialista — nas urnas.
Mas
desde então, o desemprego só fez cair, indo
de 12% para 3,6%. E o orçamento do governo não
só ficou equilibrado, como
passou a apresentar um superávit. Merkel deve
muito a Schroeder.
A reação na
crise
Os economistas keynesianos sempre dizem que a única forma
de uma economia superar rapidamente uma crise é aumentando os gastos e
estímulos governamentais. Quando o setor privado não quer gastar — pois está
acometido de grandes incertezas em relação ao futuro —, então o setor estatal
tem de ocupar o seu lugar, ampliando os gastos e os déficits.
No entanto, os dados mostram que a robustez alemã
simplesmente não tem como ser atribuída a estímulos keynesianos deste tipo:
desde 2011, o déficit orçamentário do governo é menor que 1% do PIB. E, desde
2014, virou superávit. (Ver
aqui). Mesmo no crítico ano de 2009, o déficit
chegou a "apenas" 4%, um valor muito menor que o de outros países como França (7,2%), Japão (9,5%), Reino Unido (10,2%), Espanha (11%) ou EUA (9,8%).
[Para efeitos comparativos, no caso do Brasil, o exemplo
é ainda mais explícito: o déficit em 2009 foi pequeno, de 3,2% do PIB. Já
durante o governo Dilma chegou a incríveis 10,2% do PIB. Ver aqui.]
Como consequência desta prudência orçamentária, a
Alemanha foi o único país que reduziu seu endividamento: era de 72,6% do PIB em
2009 e terminou 2016 em 68,3%. Pode parecer pouco, mas compare isso com Reino Unido (de
64,5% para 89,3%), França (de 78,9%
para 96%), Espanha (de
52,7% para 99,4%), ou EUA (de
82,4% para 106,1%).
Ou seja: a Alemanha praticou crescimento com austeridade,
e não com déficits perdulários.
E é fácil entender por que um orçamento equilibrado
estimula o crescimento econômico e por que um orçamento desarranjado afeta o crescimento.
Quando
o governo incorre em déficits orçamentários, ele tem de pegar dinheiro
emprestado. Consequentemente, investidores e empresas passam a direcionar sua
poupança para bancar os gastos do governo, e não para financiar investimentos
produtivos. Consequentemente, o investimento privado passa a ser diretamente
afetado pelos déficits orçamentários do governo. Se a poupança vai para os
títulos do governo, necessariamente haverá menos poupança disponível para o
investimento produtivo
Ademais,
déficits orçamentários sempre geram o temor de que o governo irá elevar
impostos no futuro. Contas desarranjadas não duram por muito tempo. Se o
orçamento do governo está deficitário, empreendedores e investidores sabem que
o ajuste futuro muito provavelmente ocorrerá via aumento de impostos. E aumento
de impostos, ainda que no futuro, sempre gera custos adicionais às empresas,
mudando totalmente o cenário no qual elas basearam seus planos de
investimentos. Isso inibe investimentos produtivos. Afinal, como investir
quando não se sabe nem como serão os impostos no futuro?
Estabilidade,
porto seguro e flexibilização trabalhista
Ou seja, ao manter um orçamento equilibrado e
não incorrer em déficits, a Alemanha mostrou o que deve ser feito durante uma
recessão: criar uma estabilidade macroeconômica crível.
Dado que o setor público alemão optou por não
abusar do déficit público, e tampouco contribuiu para gerar qualquer tipo de
incerteza nos investidores quanto à sua solvência, a Alemanha acabou se
tornando um porto seguro para os investidores durante o auge da crise. Boa
parte do capital global foi buscar um porto seguro na economia alemã.
Investidores saberem que não serão vítimas de
calotes, nem de desvalorizações, nem de depreciações, e nem de confiscos
tributários extraordinários é essencial para manter calmas as expectativas dos
investidores, fazendo com que eles, consequentemente, sigam apostando em
imobilizar seu capital dentro do país.
Adicionalmente, a flexibilidade salarial
adotada pelo país ajudou enormemente a economia alemã a não perder
competitividade em relação aos mercados globais. Como bem detalhado pelos
economistas Christian Dustmann, Bernd Fitzenberger, Uta Schönberg e Alexandra
Spitz-Oener na monografia "From Sick Man of Europe to Economic Superstar: Germany's
Resurgent Economy" (Do mais enfermo da Europa ao estrelato
econômico: o ressurgimento econômico da Alemanha), a Alemanha foi
sistematicamente ganhando competitividade ao fazer com que a produtividade de seus trabalhadores
crescesse mais que seus salários.
Ou seja, o bom comportamento da economia alemã
tampouco se deve a estímulos artificiais ao consumismo interno por meio de
aumentos salariais. Ao contrário, a poupança, o investimento e a capitalização
empresarial foram a ordem durante este período.
O gráfico abaixo mostra os custos trabalhistas
em alguns países ocidentais em relação à competitividade de sua economia. A
Alemanha é disparado o melhor país neste quesito.

Mas de onde veio tamanho grau de flexibilidade laboral? À
diferença do que ocorre em outros países europeus, o governo alemão não se
intromete na estipulação dos salários, embora haja
salários mínimos em profissões isoladas estabelecidos
por um acordo entre patrões e sindicatos —
construção civil, consertos de telhados e eletricistas.
Os
trabalhadores alemães têm liberdade para negociar seus salários com seus
empregadores, sem nenhuma intervenção governamental. Os salários são negociados entre os representantes dos
trabalhadores e os empresários, seja em escala regional, industrial ou mesmo
para cada empresa.
Mas
o principal ponto é que as empresas têm plena
liberdade para aderir ou sair destes acordos coletivos, o que permite
evitar aumentos salariais desacoplados da situação econômica de cada empresa.
Foi
esta grande flexibilidade salarial, em conjunto com a manutenção da estabilidade
econômica — a qual gerou um fluxo de investimentos voltados para melhorar a
produtividade de seus trabalhadores — o que permitiu que a Alemanha superasse
a crise como nenhuma outra das grandes economias mundiais.
Conclusão
Foi
essa incontestável prosperidade econômica durante os anos de crise que permitiu
que Merkel obtivesse sua quarta vitória eleitoral consecutiva, não obstante
toda a irritação que ela causou ao permitir o influxo de imigrantes islâmicos.
É
verdade que muito pouco desta incontestável prosperidade pode ser atribuída
estritamente a Merkel, uma vez que o crescimento deriva das reformas
trabalhistas, fiscais e assistencialistas adotadas ainda durante o governo de
Gerhard Schroeder. No entanto, o partido de Merkel mostrou uma virtude
fundamental durante estes últimos 12 anos: não cedeu aos cantos da sereia
keynesiana e consolidou uma invejável estabilidade macroeconômica dentro da
qual o setor privado pôde se desenvolver sem grandes temores.
Semelhante
prudência em meio à maior crise econômica desde a Segunda Guerra Mundial poderá
fazer com que Merkel supere o recorde de Konrad Adenauer e Helmut Kohl à frente
do executivo alemão.
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