quinta-feira, 16 out 2014
Este texto tem como objetivo oferecer um resumo
da evolução da teoria da atividade empresarial de Israel Kirzner.
O Professor Kirzner, um dos principais autores da moderna Escola
Austríaca, contribuiu com idéias importantes sobre a natureza da competição nos
mercados, as quais deveriam ser conhecidas por todo economista. Os economistas
treinados na tradição austríaca, por sua vez, devem interpretar sua teoria à
luz do diálogo crítico que o autor mantém com a teoria tradicional da competição
perfeita.
Para o economista não familiarizado, os termos "austríaco" e "atividade
empresarial" sugerem imediatamente alguma associação com as idéias mais
conhecidas de Schumpeter sobre inovação e destruição criativa. Mas não se trata
disso. A importância do empresário schumpeteriano é ilustrada pela atuação de
um Ford, Gates ou Jobs. Mas, para Schumpeter, na ausência de grandes inovações,
a operação da competição nos mercados é descrita satisfatoriamente pela teoria
walrasiana de equilíbrio geral.
Para Kirzner e os austríacos, por outro lado, embora não tão heroica, a
função empresarial é mais fundamental. Sua atuação é necessária para que se
possa explicar a tendência a um equilíbrio competitivo em qualquer mercado, em
todas as ocasiões.
A teoria austríaca de processo de mercado, que inclui as idéias de
Kirzner como uma de suas variantes, busca uma explicação para a emergência da
coordenação nos mercados realmente calcada no princípio do individualismo
metodológico: deve-se partir de uma descrição teórica da ação dos agentes em
situação inicial fora do equilíbrio e a partir disso descrever os mecanismos
que levam a coordenação entre os planos individuais. Em outros termos, não
basta descrever as propriedades de um estado no qual os planos já estão coordenados
sem menção aos mecanismos que possibilitam tal coordenação.
A tarefa a qual se propõe tal teoria não é apenas algo como uma
fundamentação do conceito de equilíbrio que possa ser descartada em favor do
instrumental tradicional, uma vez explicado a emergência do equilíbrio. A
teoria aponta, pelo contrário, para aspectos fundamentais do funcionamento de
mercados que não são contemplados pela teoria da competição perfeita e que, portanto,
sugerem recomendações políticas divergentes sobre questões como papel da
publicidade, variação de produto, leis antitruste e regulação de mercados
quando obtemos desvios desse modelo.
Kirzner nos mostra que as teorias que representam a ação racional dos
agentes como algo determinado apenas por restrições externas induzem a crença
em ação quase mecânica, que dispensa ação empresarial e portanto não considera
as condições institucionais que possibilitam o florescimento desse tipo de ação
e da competição. Para o leitor austríaco, a teoria da ação empresarial de
Kirzner deve ser entendida sempre em termos do contraste com a teoria da firma
tradicional, enfatizando aspectos das escolhas que fogem ao cálculo de
benefícios e custos previamente conhecidos.
Neste texto, as idéias de
Kirzner serão expostas na ordem cronológica de publicação de seus livros sobre
processo de mercado, a fim de observarmos a evolução do pensamento do autor,
que parte dos conceitos de ação humana e atividade empresarial de Mises e
progressivamente incorpora as idéias sobre aprendizado dos agentes e competição
como mecanismo de descoberta de Hayek.
O primeiro livro de Kirzner
— The Economic Point of View (1960) —, resultado da
sua tese de doutorado na Universidade de Nova York sob a orientação de Mises, é
uma história das diversas definições de economia.
Nessa obra, Kirzner deixa
clara a distinção, nem sempre compreendida pelos economistas modernos, entre
definições materialistas, que limitam a Economia ao estudo de um tipo
particular de atividades (como a definição dos economistas clássicos,
preocupada com a riqueza material) e definições subjetivistas, que identificam
a economia com aspecto particular das atividades humanas em geral (como a
definição moderna de ciência da escolha). A atividade artística, por exemplo,
antes excluída do escopo da Economia, na verdade tem aspecto econômico se o
artista é obrigado a considerar benefícios e custos de oportunidade quando
decide o que fazer com seu tempo escasso.
Para Kirzner, a definição
consagrada na profissão, proposta por Lionel Robbins, segundo a qual se estuda
a relação entre meios escassos e fins alternativos, a despeito de suas várias
qualidades, peca por sugerir que a estrutura de fins e meios seja dada. A
ênfase nos meios, infelizmente, deixa de lado o fato de que os fins não são
impulsos externos, mas muitas vezes são fruto da própria deliberação consciente
por parte dos agentes. Ao longo do tempo, fins podem ser meios intermediários
em um plano de ação mais amplo.
O subjetivismo deve assim
ir além da mera identificação de uma escala de preferências e postulação de
comportamental de maximização, mas considerar o processo geral de seleção de
padrão de comportamento planejado para a obtenção dos propósitos dos agentes.
Desse modo, Kirzner defende
a definição subjetivista mais geral proposta por Mises, baseada no conceito de
ação propositada.
O contraste de Kirzner
entre o mero economizador robbinsiano que escolhe entre meios e fins conhecidos
e o conceito mais geral do agente racional misesiano envolve algum grau de
injustiça com Robbins, pois na definição proposta por este último, baseada,
aliás, na própria literatura austríaca do período, nada indica que ela deva ser
interpretada dessa forma restrita. A despeito disso, a formulação de Robbins
passou a ser interpretada justamente dessa maneira, como se o problema
alocativo fosse um gigante exercício matemático de encontrar o ótimo de uma
função conhecida. A crítica ao mecanicismo que inspira essa "visão de
engenheiro", como já afirmamos, faz parte do pano de fundo de toda obra de
Kirzner.
O segundo livro de Kirzner, Market Theory
and the Price System (1963), é
uma tentativa de fornecer um livro texto de microeconomia baseado na visão
austríaca de processo de mercado. Apresenta várias qualidades, como na
exposição da teoria de custos sob uma ótica austríaca, estritamente
subjetivista (avaliação de custos de oportunidade associados à escolha), em
contraste com a tradição marshalliana de custos reais. O que nos interessa na
obra, porém, serão as sementes do desenvolvimento de sua teoria da atividade
empresarial.
Nesse volume, em vez dos tradicionais consumidores e
firmas, os agentes analisados por Kirzner são os consumidores, proprietários de
recursos produtivos e, atuando em camada intermediária, os empresários, que
compram fatores dos segundos e vendem produtos aos primeiros. O conceito de
empresário não pretende representar grupo de pessoas concretas, mas isolar
analiticamente uma função específica. Essa função, inexistente em equilíbrio, é
fundamental fora dele.
O que define a ação empresarial nessa obra é a
presença da incerteza. Como em Mises, toda ação humana é inerentemente
especulativa, já que não faz sentido agir se o futuro for previamente
determinado e conhecido. Para Kirzner, a decisão empresarial de compra seguida
de venda a um preço superior envolve o elemento fundamental de especulação. A
incerteza existe tanto no mercado de recursos quanto no mercado de bens finais.
Diante dessa incerteza, o empresário será o agente responsável pela resolução
do problema da coordenação das atividades econômicas, através da descoberta
empresarial de oportunidades inexploradas de lucro.
Na descrição do funcionamento dos mercados sob
incerteza, as trocas ocorrem entre agentes que se comportam como empresários,
que baseiam suas decisões em suas especulações sobre as condições desconhecidas
dos mercados. As trocas ocorridas a preços errados (fora do equilíbrio) não
geram coordenação perfeita de planos.
Dois erros podem ocorrer: em primeiro lugar, os
agentes, devido ao seu conhecimento imperfeito, realizaram transações em
condições mais desfavoráveis do que poderiam ter encontrado em outra parte de
mercado. Por exemplo, alguém vende a um preço baixo ignorando a existência de
outro comprador mais ávido pela sua mercadoria. Em segundo lugar, os agentes
podem não realizar transações favoráveis por acreditar que surgiriam melhores
oportunidades. No nosso exemplo, rejeita-se o negócio com este segundo
comprador esperando que surja um terceiro ainda mais ávido. Mais tarde, Kirzner
chamará esses erros de erros de excesso de pessimismo e de otimismo,
respectivamente.
A atividade empresarial, segundo Kirzner, é necessária
para a identificação dos erros do primeiro tipo, pois nada garante que essas
oportunidades inexploradas serão descobertas por si mesmas, sem o auxílio dos
empresários, enquanto os erros do segundo tipo, por serem mais fáceis de identificar
(as trocas não se realizaram, frustrando-se as expectativas dos agentes),
tendem a ser eliminados de forma mais automática. Com a ação empresarial,
responsável pela descoberta dos erros do primeiro tipo, temos uma descrição de
como funcionaria o processo equilibrador no mercado, segundo a análise de
Kirzner. Note que, novamente, o equilíbrio de mercado não é obtido de forma
mecânica, mas requer ação empresarial.
Esse esboço analítico é ampliado no livro mais
conhecido de Kirzner — Competição e
Atividade Empresarial (1972) —,
dedicado a explicar a emergência da coordenação de planos através da competição
entendida não um estado final de repouso, mas como uma atividade que consiste
nas ações de empresários rivais.
Essa atividade, que parte da hipótese hayekiana de
agentes ignorantes, consiste em um processo de experimentação com os planos. A
interação no mercado revela aos agentes que seus planos foram excessivamente
otimistas ou pessimistas. Para que esse processo de revisão de planos ocorra,
na eliminação de erros de pessimismo, faz-se uso do elemento empresarial.
Aqui, em vez da incerteza, entra em cena o conceito de
"estado de alerta a oportunidades inexploradas" como o atributo dos empresários
que garantiria que os agentes aprendam e conduzam o processo rumo a maior
coordenação de atividades.
O entendimento do uso do conceito de estado de alerta
por parte do autor não requer a indagação sobre quais seriam exatamente os
atributos desse estado. Pelo contrário, entendemos o que o autor quer dizer por
meio do contraste com a teoria de equilíbrio competitivo. Em equilíbrio, a ação
empresarial é dispensável: os agentes já conhecem as alternativas disponíveis
nos mercados. As firmas racionais da microeconomia, por exemplo, escolhem
quanto utilizar de cada fator segundo o princípio da maximização de lucro: cada
fator deve ser empregado na produção até que o valor de seu produto marginal se
iguale ao seu preço.
Fora do equilíbrio, porém, o ponto crucial é que esse
valor não é conhecido e diferentes empresários têm potencialmente opiniões
distintas sobre a questão. Assim, Kirzner define o estado de alerta empresarial
de forma negativa, como "um elemento que, embora crucial para a atividade
econômica em geral, não pode ser, ele próprio, analisado em termos de critérios
de economização, de maximização de lucros ou de eficiência" (p. 24).
Pelo mesmo motivo, a função empresarial é separada
analiticamente da propriedade do capital. Na teoria de equilíbrio geral, o
destino de cada um é determinado por sua dotação de recursos. Não existe espaço
para agentes que percebam, consigam financiar e explorar oportunidades de lucro
não consideradas anteriormente pelos demais. Isso, naturalmente, não implica
que a atividade empresarial não seja desempenhada por qualquer tipo de agente.
Para efeitos analíticos, Kirzner supõe consumidores e proprietários como
tomadores de preços e classe analítica de empresários com comportamento não
mecânico.
Podemos perceber aqui o contraste entre o
comportamento ativo, humano e criador do agente misesiano e o comportamento
passivo, mecânico e automático do otimizador robbinsiano. O estado de alerta
empresarial não pode, por exemplo, ser confundido com conhecimento superior. Se
a gerência de uma firma maximizadora não possui uma informação, pode contratar
um especialista e pagar o valor esperado do produto marginal dessa informação.
Mas se o empresário desconhece a existência e a utilidade desse novo
conhecimento, não é possível aplicar o mesmo modelo. Fora do equilíbrio, é
inescapável concluir que o empresário deve em algum ponto operar baseado em
seus palpites, instintos ou em algo que não pode ser redutível a cálculo de
valor esperado.
Se isso é assim, a diversidade de opiniões entre
empresários é fundamental para o processo competitivo rival resultar em
revisões de plano e um processo de aprendizado. O desperdício de recursos ao
longo do processo de mercado, dessa maneira, é inescapável. Explica-se assim a
rejeição de Kirzner às idéias dos críticos dos desperdícios envolvidos na
atividade de publicidade. Os modelos de competição monopolística, para o autor,
não seriam modelos mais realistas do que o modelo de competição perfeita, mas
sofreriam do mesmo defeito básico: teorias puras de equilíbrio ignoram as
características fundamentais da atividade competitiva. A adoção de produtos
diferenciados, em vez de fazer parte de um processo de experimentação sobre
quais seriam as preferências dos consumidores, é vista apenas como tentativa de
criar ganhos monopolistas via fidelidade à marca.
Para Kirzner, a atividade empresarial é sempre
competitiva. Nas sucessivas rodadas do processo de mercado, cada empresário,
sob ignorância, tateia possibilidades por meio de oferta de alternativas
ligeiramente mais vantajosas que seus rivais, em processo que resulta em progressiva
coordenação. Os empresários, ao explorarem as alternativas não percebidas,
obtêm lucro econômico puro. Como o estado de alerta empresarial não é um fator
produtivo e não pode ser monopolizado, a competição não cessa.
Assim, para o autor, toda atividade empresarial é
eminentemente competitiva. No sentido de processo, a competitividade só pode
ser barrada se houver um obstáculo à atividade empresarial que obstrua o
processo, algo que impeça empresários alertas de perceber e adotar um
determinado plano. A liberdade de entrada garante o caráter competitivo do
mercado.
Rejeita-se, assim, a identificação do monopólio com a
existência de um único ou poucos ofertantes de um bem ou definições baseadas em
elasticidades da demanda não infinitas para firmas específicas. A preocupação
com monopólios se atenua sobremodo quando adotamos a perspectiva de processo.
De fato, quantas vezes o leitor se deparou com
argumentos sob barreiras econômicas inexpugnáveis e ganhos de escala que
impedem a competição, para logo depois observar quão irrelevantes foram esses
temores diante do desenrolar dos fatos, que revelaram caminhos tomados pela
competição jamais antecipados pelos analistas? Se esses são de fato tão
espertos, por que não são milionários?
Kirzner considera o seu Perception, Opportunity and Profit (1979) como uma seqüência do seu livro anterior.
Nesse livro, assume progressiva importância a influência de Hayek: a teoria da
atividade empresarial de Kirzner considerará mais de perto a descrição teórica
do processo de aprendizado dos agentes, que contempla tanto o elemento
subjetivo das conjecturas empresariais quanto o processo de correção de erros
fornecido pelo sistema de preços.
A teoria original de Kirzner, de fato, fala de
oportunidades não percebidas de lucro empresarial puro. Essas oportunidades são
reais, possibilitadas pelas circunstâncias dos mercados, podendo ser percebidas
ou não. Poderia surgir aqui o fantasma que Kirzner procura sempre evitar: a
apresentação da situação do agente como algo determinado por fatores externos.
Existe de fato uma tensão, presente na história da escola austríaca e em
particular no desenvolvimento da teoria de processo de mercado, entre o aspecto
criativo e inovador da ação humana e as circunstâncias externas que limitam
essa criatividade. Ao considerar o problema hayekiano sobre o crescimento do
conhecimento dos agentes, Kirzner procura oferecer uma versão de sua teoria que
concilie os dois elementos.
Um dos aspectos considerados na tentativa de gerar
essa conciliação diz respeito à noção de erro empresarial. O fenômeno de
progressiva compatibilidade entre os planos subjetivos dos diferentes agentes
só é possível se o mercado de fato funcionar como um processo de descoberta e
correção de erros. Os erros, porém, não são associados à ação baseada em
conjecturas empresariais falíveis, como em Hayek, mas é definido por Kirzner
como falta de percepção sobre oportunidades existentes. O agente racional
maximizou corretamente, dado sua estrutura percebida de meios e fins.
Posteriormente, quando enxerga aspecto não considerado anteriormente, percebe o
erro, o que o leva a ação empresarial posterior no sentido de corrigi-lo.
Novamente, Kirzner enfatiza o aspecto não robbinsiano
do processo de aprendizado. Não se trata da importante busca deliberada por
informações, que pode ser reduzida a um cálculo de maximização sem o auxílio da
atividade empresarial. O processo de "descoberta espontânea" envolve considerar
informações cujo valor não é conhecido de antemão. A tomada de consciência do
conteúdo dessa informação gera desdobramentos empresariais não considerados,
revelando a natureza inesperada e inovadora da competição.
O autor prossegue no desenvolvimento de sua teoria da
atividade empresarial em The
Meaning of Market Process
(1992). Esse livro reflete a influência do debate entre as idéias de Lachmann
e Kirzner, que marcou o desenvolvimento moderno da teoria austríaca de
processo de mercado. Ambos partem do problema do conhecimento de Hayek, sendo
que o primeiro enfatiza o aspecto criativo da ação e o segundo o processo de
correção de erros.
Nesse debate, embora o equilíbrio nunca seja
alcançado, Kirzner acredita na preponderância das forças equilibradoras,
responsáveis pela emergência do grau de coordenação que observamos de fato nos
mercados, ao passo que Lachmann acredita na preponderância das forças
desequilibradoras geradas pelas inovações, que tornariam inútil o conceito de
equilíbrio.
Nesse livro, grande ênfase é dada à apreciação correta
do valor dos mercados. Estes não devem ser apreciados por gerar alocações
eficientes em equilíbrio, como sugere a economia do bem-estar, coisa que nunca
ocorre na prática. O sistema de preços não revela meramente informações sobre o
valor de usos alternativos de recursos em equilíbrio, como o argumento de Hayek
é comumente interpretado fora do contexto. Preços em desequilíbrio indicam aos
empresários alertas quais alterações de comportamento seriam necessárias no
futuro. Os mercados funcionam como mecanismo de descoberta das circunstâncias
econômicas que se alteram a cada instante. Para a teoria de processo, o mercado
é apreciado por criar e testar novas soluções e por gerar adaptações em tempo
real às mudanças contínuas.
O Professor Kirzner, além de suas contribuições
substanciais para o desenvolvimento dessa teoria de processo de mercado que
comentamos neste texto, continua servindo como modelo de intelectual que nos
inspira a todos. Seus textos claros e sua serena figura em conversas revelam
sempre opiniões baseadas em tentativas sinceras e cuidadosas de entender os
argumentos contrários. Seu amor pelo conhecimento resulta em uma vasta cultura
que podemos apenas admirar e tentar imitar.