segunda-feira, 6 0aio 2013
Este
livro trata de um dos mais importantes e negligenciados resultados produzidos
pelas ciências sociais, fruto do exame da viabilidade do socialismo sob o ponto
de vista da teoria econômica moderna: a tese da impossibilidade do cálculo
econômico no socialismo.
Essa
tese afirma que o ideal socialista jamais poderia encontrar uma contrapartida
no mundo real. Esse ideal, a despeito do seu forte apelo emocional, oriundo de
instintos calcados na própria natureza humana, apenas pôde encontrar suporte
científico na ultrapassada teoria econômica clássica dos séculos XVIII e XIX.
Nessa teoria, a produção não faz parte do problema econômico fundamental.
Questões sobre o que e como produzir são derivadas de considerações técnicas,
de engenharia. Aspectos como preços e propriedade privada afetariam apenas a
distribuição da produção entre classes.
A
teoria moderna, por outro lado, incorporou a produção no problema econômico: a
economia passou a tratar da relação entre meios e fins, de maneira que, na
presença de escassez relativa de recursos diante da multiplicidade de fins
imagináveis, tornou-se impossível dissociar a produção do problema mais amplo
da escolha entre usos alternativos dos recursos.
Em
termos mais concretos, a escolha sobre o que produzir, além de engenharia, deve
envolver considerações mercadológicas: talvez a recomendação técnica do
engenheiro sobre o uso de certo insumo para a produção de um bem deva ser
ignorada, pois tal insumo poderia ser empregado na produção de outro bem,
considerado mais importante pelos consumidores. Mas deveria existir marketing
no socialismo? Sem dúvida, pois a teoria econômica moderna nos mostra que o
problema econômico fundamental se faz presente em qualquer forma de organização
social, inclusive o socialismo. Mesmo se as preferências dos habitantes forem
ignoradas, ainda assim os recursos precisam ser alocados segundo as prioridades
dos dirigentes. Não há como escapar do problema.
Há
quase cem anos, o economista austríaco Ludwig von Mises lançou então o desafio:
sem propriedade privada não existem mercados e sem estes não existem preços que
tornam possível a comparação entre os diversos usos possíveis dos recursos. O
socialismo seria um ideal irrealizável, pois sem um sistema de preços não há
como superar a complexidade da divisão do trabalho que acompanha a alta
produtividade das economias atuais, a menos que tenhamos um planejador central
onisciente, que saiba todos os detalhes de como se alteram em tempo real as
preferências, as alternativas técnicas e a disponibilidade de recursos
produtivos. Se a produtividade das economias atuais não for pelo menos
replicada, condenaríamos a maioria da população mundial à morte.
Desde
o lançamento desse desafio, a distinção marxista entre socialismo utópico e
científico se inverteu: os defensores do socialismo que não ignoram a teoria
econômica foram forçados a investigar a natureza do socialismo, propondo
modelos que buscam formas alternativas de alocar recursos, sem o auxílio do
sistema de preços de mercado.
Até
o presente momento, o desafio original de Mises continua sem resposta. Todas as
tentativas de refutar seu argumento só tiveram sucesso na medida em que
conseguiram distorcer o problema original. O socialismo permanece como algo
que, embora intensamente desejado, não se têm a menor ideia do que seja.
O
fracasso da tarefa de refutar Mises está relacionado ao silêncio que acompanha
o tema. Assim como o estudante moderno, que nos seus diversos cursos de
história nunca se depara com os massacres perpetrados pelos regimes
totalitários inspirados pelo ideal socialista, também o estudante de ciências
sociais raramente trava contato com a crítica teórica ao socialismo e em
particular poucos ouviram falar sobre o debate do cálculo econômico, mesmo
entre os economistas profissionais. Por outro lado, o ideal socialista ainda
inspira a maioria dos partidos políticos e quase todos os departamentos de ciências
sociais, com a exceção da própria economia, são ainda fortemente influenciados
pelo socialismo.
Nada
mais oportuno então do que a publicação como livro da minha tese de doutorado,
que trata da história do debate do cálculo econômico socialista. Desde que foi
defendida nove anos atrás, existe uma crescente demanda pela tese, que é a
única história completa do debate publicada em língua portuguesa.
O
interesse pela tese, porém, não é derivado apenas da discussão da economia do
socialismo. O debate do cálculo foi também um ponto crucial na história do
pensamento econômico, marcando a percepção de que a Escola Austríaca de
economia não era apenas uma das vertentes da teoria moderna, mas um programa de
pesquisa próprio, com semelhanças e diferenças em relação ao mainstream.
No debate, a crítica ao socialismo foi feita por austríacos e a sua defesa por
economistas neoclássicos. Pode-se dizer que muitas características distintivas
da moderna teoria austríaca de processo de mercado foram forjadas durante o debate,
a partir das contribuições de Mises e Hayek.
Com
o expressivo aumento do interesse pelas ideias da escola austríaca que
presenciamos nos últimos anos no país, temos um segundo motivo que justifica a
publicação da tese como livro. Em relação à versão original, a mudança mais
significativa do livro foi a tradução para o português de todas as citações,
que apareciam originalmente nas línguas nas quais foram escritas. Além disso,
foram feitas mudanças marginais no texto para tornar mais claro o significado
de algumas passagens. Fora essas mudanças pequenas, o livro preserva seu
formato original, pois não ocorreram na última década contribuições que
acrescentassem argumentos verdadeiramente novos ao debate.
Assim,
a minha interpretação da controvérsia continua a mesma: as tentativas de criar
um sistema de preços artificiais para o socialismo que substituísse os preços
de mercados fracassaram por um motivo de ordem metodológica. As simplificações
utilizadas na teoria da competição perfeita, úteis para explicar certos
aspectos dos fenômenos de mercado, se tornam enganadoras quando usadas para construir
e controlar o fenômeno estudado. Sendo assim, a simplicidade da teoria é
transferida para o objeto estudado, o que reduz sobremodo a complexidade do
problema alocativo real.
Dessa
forma, a evolução dos modelos de socialismo ao longo do debate é marcada pelo
progressivo abandono de elementos centralizadores e consequente reincorporação
de elementos dos mercados reais, até chegarmos as propostas de socialismo que contemplam
a existência de bolsas de valores. Cada modelo era de fato criticado por
ignorar algum aspecto do problema alocativo que aparece nos mercados reais. O
exame desse gradual abandono do planejamento consciente da produção é um
exercício útil para o estudante de economia refletir sobre as limitações do
aparato teórico desenvolvido para teoria econômica. Nesse sentido, o contraste
entre as opiniões austríacas e neoclássicas ao longo do debate faz com que
saltem aos olhos as vantagens da primeira no que diz respeito à apreciação do
fenômeno da competição nos mercados.
A história de um debate centenário
Em 1920, na Áustria, em um período no qual o ideal
socialista alcançava grande aceitação, o economista Ludwig von Mises publicou
um artigo em que defendia a tese de que o socialismo não seria uma forma
possível de organização social, a despeito do apoio que essa causa obtivesse,
do ardor com que fosse desejado e da previsão marxista sobre sua
inevitabilidade.
Para Mises, o socialismo marxista, que prometera trazer consigo a
racionalidade para a esfera das atividades econômicas em substituição ao 'caos
da produção capitalista', fracassaria justamente quando se investigasse à luz
da teoria econômica como seria o funcionamento de uma economia socialista.
Mises notou que os autores marxistas pouco ou nada diziam sobre a natureza
do sistema econômico socialista. A mesma observação foi feita pelo economista
russo Boris Brutzkus, que simultaneamente formulou a crítica feita por Mises:
"O socialismo científico, limitado exclusivamente à crítica da ordem
econômica capitalista, não produziu até agora uma teoria para a ordem econômica
socialista" (Brutzkus, 1920:3).
Quando a análise econômica do socialismo fosse feita, chegaríamos então à
conclusão de que ali não seria possível alocar os recursos escassos de forma
racional. Segundo Mises, em qualquer sociedade, se os recursos forem escassos,
a decisão sobre o emprego de um fator na produção de um bem deve sempre
comparar a importância do recurso na produção desse bem com a sua importância
em empregos alternativos. Em uma economia avançada, as formas como os bens
podem se combinar nos processos produtivos são incontáveis, de modo que, sem um
sistema de preços de mercado para que se possa comparar benefícios com custos
— tarefa que o autor denomina 'cálculo econômico' — seria impossível escolher
combinações economicamente viáveis. Como no socialismo não existiriam mercados
nos quais preços fossem formados, o cálculo econômico seria impossível e
estaríamos perdidos diante da complexidade do problema econômico. Em vez de
racionalizar o processo produtivo, o socialismo traria o caos.
A tese de Mises é mais bem resumida com as próprias palavras do autor:
"Onde não existe mercado livre, não existe mecanismo de preços; sem um
mecanismo de preços, não existe cálculo econômico. (Mises, 1935:111)"
Desde a formulação dessa tese, os economistas socialistas têm buscado
responder ao desafio de Mises, formulando modelos de socialismo que possam
refutar o argumento da impossibilidade.
O conjunto de propostas de socialismo mais significativo foi formulado não
por autores marxistas, mas sim por economistas neoclássicos, cujo programa de
pesquisa reconhecia a importância do problema. Essas propostas procuravam
resolvê-lo por meio da introdução no socialismo de alguma forma de sistema de
preços, mesmo que fosse de forma simulada. A mais famosa dessas propostas foi
sugerida pelo economista polonês Oskar Lange, em um artigo publicado em 1936-7,
considerado o ponto culminante das discussões entre os economistas curiosamente
denominados de 'socialistas de mercado'. Na versão final do modelo de Lange, as
firmas estatais seriam instruídas a minimizar os custos médios e igualar os
custos marginais aos preços enunciados centralmente. O planejador estabeleceria
os preços que, por tentativas e erros, seriam alterados de forma a igualar
oferta e demanda. O debate em torno desses modelos constitui o chamado Debate
do Cálculo Econômico Socialista.
O objetivo desta tese é estudar tal debate. O estudo da controvérsia do
cálculo se reveste de interesse por vários motivos. Em primeiro lugar, existe o
interesse no objeto em si da discussão. Simpatizantes e opositores do
socialismo, ambos devem levar a sério o argumento que afirma a impossibilidade
de sua existência. Se correta a tese sobre a impossibilidade do socialismo,
qualquer discussão sobre a desejabilidade se torna ociosa ou sobre a sua
inevitabilidade incorreta. De forma mais geral, a discussão sobre a economia do
socialismo feita no debate deve interessar a todos aqueles que investigam quais
seriam as formas de organização social mais adequadas, ou seja, deve interessar
a todos os cientistas sociais.
Em segundo lugar, o debate é importante para os economistas que se
interessam pela evolução da teoria econômica e por questões metodológicas a
respeito do significado da teoria que utilizam. Embora o debate propriamente
dito se inicie em 1920, a discussão sobre como o socialismo lidaria com o
problema alocativo sem um sistema de preços se estende por um período que se
inicia pelo menos desde 1850 até os dias de hoje. É curioso então estudar como
o debate toma cursos diferentes conforme a teoria econômica avança e também
como esta mesma deve parte desse avanço à própria controvérsia do cálculo. O
debate passa pelo confronto entre as teorias clássica e neoclássica do valor,
toma corpo com a maturação da teoria neoclássica, é parcialmente responsável
pelo aprofundamento da cisão entre a Escola Neoclássica e a Escola Austríaca,
se relaciona com a evolução da Teoria do Bem Estar e incorpora as contribuições
posteriores da Escola de Escolha Pública e Teoria da Informação Assimétrica.
No debate, as teorias de equilíbrio geral e parcial foram utilizadas não
para explicar o funcionamento dos mercados, mas sim para construir um novo
sistema econômico. Isso, como veremos, dará origem a uma série de questões
metodológicas sobre o significado e as limitações dessas teorias.
Finalmente, e em terceiro lugar, é interessante estudar a história da
controvérsia por si mesma. Isso porque se trata de um dos debates mais
interessantes da história da economia, no qual se envolveram alguns dos mais
eminentes economistas do século XX.
Dada a importância do debate, é de surpreender, mesmo entre os economistas,
quão poucos são aqueles que já ouviram falar do mesmo. Adicionalmente, entre
estes últimos, a maioria tem conhecimento de uma versão bastante distorcida.
Enquanto nessa versão o argumento de um dos lados da controvérsia é totalmente
descaracterizado, os historiadores modernos que a contestaram se preocuparam em
recuperar o significado do argumento distorcido, deixando todavia de expor com
cuidado os argumentos do outro lado. Por isso, é uma ambição do presente
trabalho deixar os participantes falarem por si mesmos, de modo a apresentar
uma narrativa que exponha todos os lados da questão. Isso, naturalmente, sem
nos furtarmos de tomar posição sobre o mérito dos argumentos apresentados.
Outro intento que buscaremos no trabalho será a apresentação de uma história
completa da controvérsia. Em vez de tratar apenas do núcleo do debate, ocorrido
nas décadas de vinte e trinta do século XX, procuraremos retomar com mais
cuidado os seus antecedentes. Com efeito, o problema em questão já fora tratado
em 1850 por Gossen, um dos precursores da Revolução Marginalista, e continuou
sendo investigado por autores como Wieser, Cassel e Pareto, entre outros.
Tampouco as discussões se encerram na década de trinta, quando ocorrem as
principais tentativas de refutar a tese de Mises. Depois de um período de
dormência, o debate é retomado na última década do século, e persiste até hoje.
Este trabalho abarcará a fase moderna do debate, relacionando-a com as fases
precedentes.
Roteiro
O
presente trabalho é dividido da seguinte maneira.
No
primeiro capítulo apresentamos todo o pano de fundo para a história deste debate
centenário, começando pela constatação de Mises acerca da inviabilidade prática
do socialismo, passando pelas definições de socialismo, pela relação entre teoria
e história, e, finalmente, apresentando a base metodológica do problema
No
segundo capítulo descrevemos a 'pré-história' do debate, que trata das
primeiras aplicações da teoria neoclássica ao problema da economia socialista,
desde Gossen em 1850 até os trabalhos de Wieser e Pareto, entre outros. Esses
trabalhos estabelecem que a natureza do problema econômico — a escolha diante
da escassez — seria a mesma em qualquer sociedade.
Em
seguida, no capítulo 3, trataremos do início da controvérsia. Mises, Weber e
Brutzkus afirmam simultaneamente que o socialismo seria impossível devido à
incapacidade de resolver o problema alocativo na ausência de mercados. No
capítulo 4, analisaremos a primeira geração de tentativas de refutar a tese de
Mises. Estudaremos o debate em alemão que ocorreu na década de vinte e o debate
em inglês da década de trinta, que versa sobre as propostas de 'socialismo de
mercado'.
No
capítulo seguinte, estudaremos as objeções que os economistas austríacos
fizeram a esse tipo de solução, em especial a reação de Hayek às propostas de
socialismo de mercado. Como subproduto dessa crítica, veremos como tomou corpo
a formação de um programa de pesquisa austríaco próprio, distinto do programa
neoclássico tradicional.
No
capítulo 6, estudaremos o período entre o final dessa fase do debate, em torno
de 1940, até antes de sua retomada, em 1990. Esse período é rico em
interpretações alternativas sobre quem teria 'ganho' o debate. No final desse
capítulo retomaremos a discussão desenvolvida na seção acima, construindo a
nossa própria avaliação da controvérsia.
No
sétimo capítulo, veremos como os desenvolvimentos teóricos ocorridos na segunda
metade do século XX, em especial a economia da informação, deram origem à
retomada do debate, com novos modelos de socialismo de mercado que procuram
desenhar mecanismos de incentivos para lidar com o problema agente-principal no
socialismo.
Finalmente,
no oitavo capítulo, estudaremos outras contribuições contemporâneas ao debate
que retomam a visão marxista sobre o problema. A discussão dessas contribuições
nos levará de volta àquilo que identificamos como o ponto central da questão, a
saber, a complexidade do problema alocativo.
Concluiremos
com uma avaliação geral do debate e especulações sobre que rumo poderá tomar no
futuro.
Fabio
Barbieri
São
Paulo, janeiro de 2013.