quinta-feira, 21 jun 2012
No
dia 26 de outubro de 2010, Leandro Roque, editor e tradutor do site do
Instituto Ludwig von Mises Brasil, escreveu um texto intitulado "
A urgente necessidade de se
desestatizar os Correios", o qual foi republicado no dia 16 de junho de
2012.
No
texto, Leandro deixa claro por que a desestatização da produção de qualquer bem
ou da prestação de qualquer serviço será sempre benéfica para os consumidores,
e por que, ao revés, a estatização será sempre maléfica, beneficiando apenas
burocratas, políticos e sindicalistas.
No presente texto, contarei para vocês uma história que
poucos conhecem, sobretudo os que não são da área jurídica. Trata-se de um
processo que tramitou no Supremo Tribunal Federal, a ADPF (Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental) 46, ajuizada pela ABRAED (Associação
Brasileira das Empresas de Distribuição) contra a ECT (Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos), na qual foi questionada a constitucionalidade da Lei nº 6.538/1978,
que "dispõe sobre os serviços postais" no Brasil. Esta lei não apenas assegura
o monopólio dos serviços postais aos Correios (arts. 2º e 9º), como considera
crime a "violação do privilégio postal da União" (art. 42).
Na petição inicial, que pode ser lida na íntegra aqui, a
ABRAED alegou que a lei questionada afrontaria as seguintes regras da nossa Constituição
Federal de 1988: art. 1º, inciso IV; art. 5º, inciso XIII; e art. 170, caput,
inciso IV e parágrafo único. Tais regras possuem a seguinte redação:
Art. 1º A República Federativa do
Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
IV - os valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa;
Art. 5º Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...)
XIII - é livre o exercício de
qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer;
Art. 170. A ordem econômica, fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por
fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados os seguintes princípios:
(...)
IV - livre concorrência;
(...)
Parágrafo único. É assegurado a
todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos
em lei.
A ABRAED ajuizou a ação porque os Correios estavam
ingressando com várias medidas judiciais contra empresas de distribuição que
prestavam serviços de entrega de malotes, jornais, revistas, contas de água e
luz etc. Em tais ações, os Correios alegavam ter o monopólio de todo e qualquer
serviço postal e tentavam impedir tais empresas de distribuição de continuar
exercendo livremente suas atividades. Um absurdo, mas, infelizmente, chancelado
pela legislação!
A ABRAED não requereu o fim do monopólio dos Correios, mas
apenas que ele ficasse restrito especificamente a cartas, entendidas estas como
"papel escrito, envelopado, selado, enviado de uma parte a outra com
informações de cunho pessoal".
Em um longo, bem escrito e percuciente voto, o qual pode (e
deve!) ser lido na íntegra aqui,
o relator do processo, Ministro Marco Aurélio, decidiu pela procedência da
ação, entendendo que o monopólio estatal dos Correios "viola os princípios da
livre iniciativa, da liberdade no exercício de qualquer trabalho, da livre
concorrência e do livre exercício de qualquer atividade econômica"[1].
No entanto, todos os demais Ministros discordaram. Ao
final, prevaleceu a tese do Ministro comunista[2]
Eros Grau. Sem conseguir rebater os irrefutáveis argumentos de Marco Aurélio,
Eros Grau saiu pela tangente e começou seu voto assim:
Acabamos de ouvir um longo voto, muito bonito desde o seu primeiro
momento, quando o Ministro relator começou fazendo uma exposição sobre a
interpretação, o círculo hermenêutico, a pré-compreensão, temas que entendo
fascinantes. Mas vou pedir vênia para divergir. Diria, inicialmente, que toda a
exposição atinente à atividade econômica em sentido estrito perde o sentido
porque o serviço postal é serviço público.
Mais
adiante, repetiu o falso argumento:
O serviço postal não consubstancia atividade econômica em sentido
estrito, a ser explorada por empresa privada. Por isso é que a argumentação em
torno da livre iniciativa e da livre concorrência acaba caindo no vazio, perde
o sentido.
Como a refutação do longo e bem articulado voto do Ministro
Marco Aurélio era impossível, em seu curto e insosso voto Eros Grau apelou para
frases de efeito como "a realidade social é o presente; o presente é vida; e
vida é movimento". E ainda achou espaço para incluir no seu voto a seguinte
pérola:
No Brasil, hoje, aqui e agora — vigente uma Constituição que diz quais
são os fundamentos do Brasil e, no artigo 3º, define os objetivos do Brasil
[porque quando o artigo 3º fala da República Federativa do Brasil, está dizendo
que ao Brasil incumbe construir uma sociedade livre, justa e solidária] —
vigentes os artigos 1º e 3º da Constituição, exige-se, muito ao contrário do
que propõe o voto do Ministro relator, um Estado forte, vigoroso, capaz de
assegurar a todos existência digna. A proposta de substituição do Estado pela
sociedade civil, vale dizer, pelo mercado, é incompatível com a Constituição do
Brasil e certamente não nos conduzirá a um bom destino.
O
Ministro Joaquim Barbosa acompanhou a tese do comunista Eros Grau e também se
achou no direito de proferir sua pérola, ao afirmar o seguinte:
Uma análise pormenorizada do que consubstanciaria o serviço postal
conduz inafastavelmente à constatação de que o interesse primordial em jogo é o
interesse geral de toda a coletividade. É do interesse da sociedade que, em
todo e qualquer município da Federação, seja possível enviar/receber cartas
pessoais, documentos e demais objetos elencados na legislação, com segurança,
eficiência, continuidade e tarifas módicas. Não é mera faculdade do Poder
Público colocar esse serviço à disposição da sociedade, e muito menos deixar
sua completa execução aos humores do mercado, informado por interesses privados
e econômicos.
Viram só? O Ministro Joaquim Barbosa acha que a melhor
forma de assegurar serviços postais seguros, eficientes, contínuos e baratos
para todos é entregar esses serviços a uma estatal monopolista. Se eu fosse um
Ministro presente naquela sessão de julgamento, eu o interpelaria sem titubear:
"Ministro Joaquim, vamos estatizar toda a economia, a fim de que em todas as
áreas do mercado tenhamos empresas estatais oferecendo bens e serviços de forma
eficiente, segura, contínua e barata?" O perigo era ele não entender que eu
estava sendo irônico e responder: "Vamos!"
O Ministro Carlos Ayres Britto, outro conhecido por
proferir pérolas nas sessões de julgamento do STF[3],
também votou pela manutenção do monopólio estatal dos Correios. Ele disse que
os Correios precisam ser monopolistas para "favorecer a comunicação privada
entre pessoas, a integração nacional e o sigilo da correspondência". Mais um
que acredita que estatais monopolistas são melhores prestadoras de serviços e
fornecedoras de bens do que empresas privadas atuando em regime de livre
competição.
No final das contas, os Correios, como era de se esperar,
mantiveram seu monopólio estatal[4],
mas com uma importante ressalva, felizmente. Os Ministros excluíram do
monopólio a distribuição de boletos, jornais, livros e periódicos. Menos mal.
Confiram a ementa do julgado:
"ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. EMPRESA PÚBLICA DE
CORREIOS E TELEGRÁFOS. PRIVILÉGIO DE ENTREGA DE CORRESPONDÊNCIAS. SERVIÇO
POSTAL. CONTROVÉRSIA REFERENTE À LEI FEDERAL 6.538, DE 22 DE JUNHO DE 1978. ATO
NORMATIVO QUE REGULA DIREITOS E OBRIGAÇÕES CONCERNENTES AO SERVIÇO POSTAL.
PREVISÃO DE SANÇÕES NAS HIPÓTESES DE VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL.
COMPATIBILIDADE COM O SISTEMA CONSTITUCIONAL VIGENTE. ALEGAÇÃO DE AFRONTA AO
DISPOSTO NOS ARTIGOS 1º, INCISO IV; 5º, INCISO XIII, 170, CAPUT, INCISO IV E
PARÁGRAFO ÚNICO, E 173 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA
LIVRE CONCORRÊNCIA E LIVRE INICIATIVA. NÃO-CARACTERIZAÇÃO. ARGUIÇÃO JULGADA
IMPROCEDENTE. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO CONFERIDA AO ARTIGO 42 DA LEI
N. 6.538, QUE ESTABELECE SANÇÃO, SE CONFIGURADA A VIOLAÇÃO DO PRIVILÉGIO POSTAL
DA UNIÃO. APLICAÇÃO ÀS ATIVIDADES POSTAIS DESCRITAS NO ARTIGO 9º, DA LEI.
1. O serviço postal —- conjunto de atividades que torna possível o envio
de correspondência, ou objeto postal, de um remetente para endereço final e
determinado —- não consubstancia atividade econômica em sentido estrito.
Serviço postal é serviço público.
2. A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas
espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito.
Monopólio é de atividade econômica em sentido estrito, empreendida por agentes
econômicos privados. A exclusividade da prestação dos serviços públicos é
expressão de uma situação de privilégio. Monopólio e privilégio são distintos
entre si; não se os deve confundir no âmbito da linguagem jurídica, qual ocorre
no vocabulário vulgar.
3. A Constituição do Brasil confere à União, em caráter exclusivo, a
exploração do serviço postal e o correio aéreo nacional [artigo 20, inciso X].
4. O serviço postal é prestado pela Empresa Brasileira de Correios e
Telégrafos — ECT, empresa pública, entidade da Administração Indireta da
União, criada pelo decreto-lei n. 509, de 10 de março de 1.969.
5. É imprescindível distinguirmos o regime de privilégio, que diz com a
prestação dos serviços públicos, do regime de monopólio sob o qual, algumas
vezes, a exploração de atividade econômica em sentido estrito é empreendida
pelo Estado.
6. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos deve atuar em regime de
exclusividade na prestação dos serviços que lhe incumbem em situação de
privilégio, o privilégio postal.
7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os serviços
públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida sob privilégio,
inclusive, em regra, o da exclusividade.
8. Argüição de descumprimento de preceito fundamental julgada
improcedente por maioria. O Tribunal deu interpretação conforme à Constituição
ao artigo 42 da Lei n. 6.538 para restringir a sua aplicação às atividades
postais descritas no artigo 9º desse ato normativo."
(ADPF 46, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:
Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 05/08/2009, DJe-035 DIVULG
25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-01 PP-00020)
Que o monopólio estatal é péssimo, sobretudo para o
consumidor, qualquer pessoa sensata sabe. Essas pessoas também sabem que
monopólios estatais não são apenas ineficientes, mas antros de corrupção e de
toda sorte de baixaria do mundo político e burocrático. Os Correios,
evidentemente, não fogem a essa regra[5].
Mas e daí? À luz da Constituição, era preciso encontrar uma
interpretação jurídica que acabasse com o monopólio estatal dos Correios. Os
Ministros do STF tiveram a chance de fazê-lo no julgamento da ADPF 46, mas, com
exceção do Ministro Marco Aurélio, fugiram do verdadeiro debate — livre
iniciativa e livre concorrência são ruins para o consumidor? Um monopólio
estatal atende melhor o consumidor do que um mercado desimpedido e competitivo?
— e caíram no falacioso argumento do comunista Eros Grau, para quem "serviços
públicos" não configuram "atividade econômica em sentido estrito" e, pois, são
insuscetíveis de prestação pela iniciativa privada, sabe-se lá por quê? Sabendo
que a expressão "monopólio" tem um sentido pejorativo, Eros Grau usou um
eufemismo — "privilégio legal" — e conseguiu vencer a sua "luta de classes"[6].
Pior para todos nós, defensores da liberdade econômica.
[1] O
voto tem trechos muito bons, em que o Ministro faz uma defesa firme e
consistente da livre iniciativa e da livre concorrência e faz críticas acerbas
ao monopólio estatal de qualquer atividade econômica. No entanto, o Ministro
parece não defender uma total desestatização do setor, já que flerta em alguns
momentos com a ideia do Estado regulador. Sobre o assunto, nunca é demais
relembrar os excelentes textos de Leandro Roque sobre as privatizações
brasileiras (http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=637
e http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=646),
nos quais ele, mais uma vez, deixa claro que privatizar sem desestatizar é
insuficiente, representando, quando muito, uma mera mudança de endereço dos
burocratas, que saíram das vetustas estatais e foram para as modernas agências
reguladoras, facilmente capturadas pelos amigos do rei.
[2]
Não sabia que Eros Grau é comunista? Então leia isso
aqui: Sim, o Ministro comunista, hoje aposentado, confessou que tentava
preservar a utopia do comunismo nos votos que proferia. Com certeza esse foi um
dos votos em que ele fez isso, não é mesmo?
[3] Em
seu voto na ação que pedia aos casais homossexuais os mesmos direitos dos
heterossexuais, ele afirmou que "o órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo
da natureza". No julgamento sobre a Lei da Ficha Limpa, ele se saiu com essa:
"enquanto o indivíduo é gente, o membro do poder é agente. Para sair da singela
condição de gente para a de agente, é preciso maior qualificação, e essa é a
razão de ser da Ficha Limpa". Que erudição!
[4]
Nesses julgamentos eu sempre me lembro de uma advertência feita por
Hans-Hermann Hoppe: "Atualmente, o que ocorre é que, na eventualidade de um
conflito entre um cidadão e o estado, será sempre o estado (ou um juiz que é
empregado do estado) quem irá decidir quem está certo. Se o estado
decidir, por exemplo, que eu tenho de pagar a ele mais impostos e que eu não
posso permitir que pessoas fumem no restaurante do qual sou o dono, e se eu não
concordar com nenhuma destas decisões, o que posso fazer a respeito?
Posso apenas recorrer a um tribunal estatal, cujos juízes — muito bem
remunerados com o dinheiro coletado pelo estado via impostos — são pagos para
impingir as regulamentações do governo. E o que estes juízes, com toda a
probabilidade, irão decidir? Que tudo isto é legal, obviamente!".
[5] http://pt.wikipedia.org/wiki/Esc%C3%A2ndalo_dos_Correios.
[6]
Pelas informações sobre o julgamento que constam do site
do próprio STF, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) não se
manifestou como interessado para defender a livre iniciativa e a livre
concorrência. Isso é estranho, porque no site do Ministério da Justiça há um
link que explica para que servem o CADE e os demais órgãos integrantes do SBDC
(Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência), e lá é possível ler o seguinte:
"A defesa da concorrência preocupa-se
com o bom funcionamento do sistema competitivo dos mercados. Ao se assegurar a
livre concorrência, garante-se não somente preços mais baixos, mas também
produtos de maior qualidade, diversificação e inovação, aumentando, portanto, o
bem-estar do consumidor e o desenvolvimento econômico. A defesa da
concorrência não se presta a proteger o concorrente individual, mas sim a
coletividade, que se beneficia pela manutenção da concorrência nos
mercados. O consumidor, portanto, é sempre o beneficiário final das
normas de defesa da concorrência".
Talvez se o CADE, autoridade estatal, tivesse explicado isso ao comunista Eros
Grau e seus seguidores, o julgamento da ADPF 46 tivesse outro desfecho.