Os títulos emitidos pelo governo sempre foram vistos
como "ativos livres de risco". A dívida pública, ao menos daqueles países mais
fiscalmente responsáveis, sempre foi tida como um investimento de risco zero.
Consequentemente, no momento de se avaliar qualquer
tipo de investimento, o pilar sobre o qual todos os cálculos se baseavam era a
rentabilidade dos títulos da dívida do governo: "se a dívida pública de um ano
proporciona 7% de rentabilidade sem risco nenhum, outros investimentos
alternativos que de fato são arriscados terão de render muito mais para
compensar sua possibilidade de falência".
Trata-se de um raciocínio que, à primeira vista, faz
sentido e soa bem, talvez também por causa da necessidade humana de encontrar crenças
firmes nas quais se agarrar, principalmente em momentos de turbulência.
No entanto, o fato é que a dívida pública jamais foi
um ativo livre de risco que nos protegerá contra qualquer perda do nosso
capital: durante anos, em todos os países, ela sempre foi paga parcialmente por
meio da inflação monetária, a qual, ao diluir o valor da moeda, retornava ao proprietário
do título um dinheiro cujo poder de compra é menor do que era quando ele havia
emprestado ao governo.
Mais recentemente, em algumas partes do
planeta, vimos que ela também passou a ser parcialmente repudiada. Já outros países
simplesmente deram o calote direto.
Nestes casos, por ser vendida como algo que não é, já
cabe qualificá-la de fraude. Mas este nem é o ponto.
Quando digo que a dívida pública é uma fraude não me
refiro a estes fenômenos, os quais já são bem conhecidos por todos. Refiro-me,
isto sim, à fraude que ela causa dentro de todo o processo de criação de
riqueza da economia.
A
dívida privada e suas consequências
Já sabemos que o crescimento econômico não advém do consumo, mas
sim da poupança e do investimento. E, precisamente por isso, os "rentistas"
-- isto é, aqueles que emprestam seu capital -- representam uma engrenagem indispensável dentro
da economia.
Sem rentistas que abram mão do seu dinheiro -- ou
seja, do consumo presente -- para que outros empreendedores com melhores idéias
sejam capazes de criar novos e melhores planos de negócio, viveríamos em uma
economia de subsistência.
Ao emprestar, o rentista não está apenas abrindo mão
do consumo presente: ele está emprestando seu tempo na forma de capital. Ele está
abrindo mão de prazeres presentes e restringindo seu consumo visando a um maior
ganho futuro.
A remuneração do rentista, portanto, está mais do
que justificada mesmo quando ele não move
um único dedo para tocar o empreendimento: simplesmente pelo fato de ter de
esperar que as boas idéias maturem, simplesmente pelo fato de transferir parte
do seu tempo vital a empreendedores perspicazes, ele merece se apropriar de uma
parte da produção futura, a qual, não fosse o rentista, simplesmente não teria
sido possível de ser produzida.
Entretanto, observe: o pagamento ao rentista deve
advir da produção futura, a qual, sem
ele não seria possível.
Se eu utilizo meu tempo efetuando tarefas improdutivas,
estarei perdendo tempo. Logo, não obterei
nada em retorno. Igualmente, a tarefa mínima que deve efetuar um rentista é a
de avaliar as aptidões e capacidades do empreendedor para quem ele irá
emprestar seu capital, assim como a viabilidade do projeto que ele irá
financiar. Se ambos não se saírem bem, o rentista simplesmente não terá como
cobrar a devolução do seu empréstimo.
Neste sentido, a tarefa do rentista possui uma dimensão
social, na medida em que ele opta por utilizar seu tempo na geração de riqueza para os demais indivíduos da sociedade.
Por isso, quando ele acerta e ganha dinheiro como consequência,
isso significa que as demais
pessoas da economia saíram ganhando. Ele utilizou seu tempo para projetos
que, por serem lucrativos, demonstram estarem satisfazendo as necessidades mais
urgentes dos consumidores. Ele, em suma, criou valor.
Inversamente, se ele erra e perde dinheiro, isso
significa que ele dilapidou seu tempo e seu capital sem ter gerado nada de
valioso em troca. Os prejuízos auferidos pelo empreendimento significam que foram
criados bens e serviços que não são úteis aos consumidores. Recursos escassos
foram imobilizados e destruídos em atividades que não aumentaram o bem-estar
das pessoas. Ele, em suma, destruiu valor.
Até aqui, tudo certo: os interesses individuais e
coletivos estão em sintonia. Porém, o que ocorre com a dívida pública?
Por
que a dívida pública é uma fraude
Com a dívida pública, toda a rede de relações mutuamente
benéficas descrita acima é destruída.
Para começar, o que realmente permite a quitação da
dívida pública? Por acaso, seria a geração de bens futuros valiosos por parte dos
projetos em que o governo investe? Ou seria simplesmente a capacidade do
governo de arrecadar impostos de seus súditos?
É evidente que a resposta é a última.
Nenhum rentista investiria seu capital em uma
empresa cujo plano de negócios fosse cavar buracos para depois tapá-los
novamente. No entanto, quem empresta ao governo está fazendo exatamente isso.
O governo, desta forma, permite aos rentistas
realizar um uso improdutivo do seu tempo e do seu dinheiro sem experimentar perdas em decorrência disso.
E observe: não estou afirmando que o governo não pode
nunca fazer um uso produtivo dos recursos que maneja. O que estou dizendo é
que, primeiro, o governo não seleciona seus investimentos em função da
rentabilidade esperada dos mesmos (basicamente porque não tem
como conhecê-la) e, segundo, que o pagamento da dívida pública não depende do resultado positivo destes
investimentos.
Desta maneira, todo o processo econômico de geração de
riqueza fica completamente invertido: o rentista agora pode imobilizar seu
capital sem qualquer critério e, pior, irá se apropriar de parte da riqueza
produzida por todo o resto da sociedade (por meio dos impostos que o governo confiscará
dos produtivos para honrar os títulos em posse do rentista).
Os incentivos gerados por esse arranjo são claramente
perversos, especialmente para aqueles poupadores que rentabilizam seu capital
de maneira automática. Em momentos de crise, por exemplo, todos desejam
emprestar seu dinheiro para o governo: não porque imaginam que o governo fará
uso sensato e produtivo do mesmo, mas sim porque o governo detém o poder de
tributar os produtivos e, com isso, garantir a quitação deste "investimento".
A injustiça é clara: os rentistas sem idéias nem
projetos podem agora proteger seu patrimônio -- e, inclusive, auferir boas
rentabilidades -- à custa daqueles outros rentistas -- e trabalhadores e
empreendedores -- que seguem se arriscando e contribuindo para manter a
economia funcionando.
Trata-se de um maciço arranjo de subsídio cruzado,
em que os interesses individuais entram em conflito com os interesses
coletivos: os investidores da dívida pública e os políticos gastadores e irresponsáveis
prosperam à custa dos pagadores de impostos presentes e futuros (trabalhadores,
empreendedores e investidores do setor privado).
Culpados
inocentes
Contudo, sejamos claros: mesmo com tudo o que foi
dito, não faz sentido considerar "inimigas da humanidade" aquelas pessoas que
se refugiam de maneira persistente na dívida pública.
A imensa maioria dos rentistas -- entre os quais se
encontram, por exemplo, os pequenos poupadores que possuem planos de previdência
e fundos de investimento -- desconhece as especificidades do problema, e se
limita a responder a incentivos: "se o governo me pede dinheiro emprestado e me
devolve com juros, então é claro que empresto".
O que realmente está em questão é a urgência de se perceber
que a organização econômica atual -- em que o trilionário volume da dívida
pública é o ativo predileto de bancos, seguradoras, fundos de pensão, fundos de
investimento -- gera enormes distorções não apenas no lado financeiro da
economia, como também no lado produtivo: o governo se converte no garantidor de
fundos que ele desperdiça para financiar sua máquina burocrática, fundos estes
que ele só é capaz de amortizar confiscando parte da rentabilidade do capital
corretamente investido por outros cidadãos em investimentos realmente
produtivos e demandados pelos consumidores.
Assim, os produtivos, os corajosos e os dispostos a
assumirem riscos são penalizados para bancar os improdutivos e avessos ao risco.
Conclusão
Obviamente, só existem pessoas que emprestam para o
governo porque permitimos que o governo tenha carta branca para gastar mais do
que arrecada e se endivide em consequência disso. Caso nós cidadãos exigíssemos
que o governo fosse estritamente limitado ao que arrecada, a figura do rentista
desapareceria por completo.
De novo: só há rentistas porque o governo é
populista e gasta mais do que arrecada, pois os políticos querem acomodar as
demandas de todos os grupos de interesse. Quanto maior o escopo do governo,
quanto maior a variedade de áreas em que ele intervém, quanto maiores e mais
diversas as tarefas que os eleitores querem que ele faça, mais irão prosperar
os rentistas.
Logo, criticar rentistas mas não defender uma maciça
redução do papel e do escopo do estado é uma total contradição.
Por isso, para uma economia prosperar sem estas injustiças
cometidas pelo governo seria necessário um arranjo em que há ativos
absolutamente seguros porém nada rentáveis (como o ouro) e todo um conjunto de
projetos empreendedoriais com distintos perfis de duração e de risco, nos
quais, via debêntures, ações, títulos privados ou outros instrumentos, os
rentistas possam imobilizar seu capital, sempre assumindo a possibilidade de não recuperá-lo.
Uma economia cresce quando rentistas só conseguem obter
ganhos ao participarem do processo social de criação de riqueza. Por isso, um
arranjo próspero é aquele em que não há como rentistas auferirem retornos situando-se
à margem do processo de criação de riqueza -- ou, principalmente, criando
obstáculos a ele.
Mas, para isso, é necessária uma profunda redução do
estado -- o que quase ninguém quer.
______________________________________________
Leia
também:
A explosiva situação
fiscal do governo brasileiro - em dois gráficos
A social-democracia no
Brasil entrou em colapso - abandonemos os delírios e sejamos mais realistas
Quanto o governo federal
brasileiro realmente gasta com a dívida? Não é o que dizem os demagogos