Trecho de uma entrevista informal concedida
ao Instituto Juan de Mariana
IJM: A respeito do debate sobre o
cálculo econômico no socialismo, houve uma divisão entre algumas correntes
austríacas.
O
argumento original de Mises é o de que a ausência de propriedade privada sobre
os meios de produção impossibilita a existência de trocas de mercado. Sem as trocas de mercado, não há formação de
preços. E sem preços, é impossível haver
qualquer cálculo econômico racional.
Já
Hayek se concentrou no argumento da dispersão de informação. Segundo ele, é impossível um comitê central
apreender e utilizar corretamente toda a informação que está dispersa pela
economia. Consequentemente, é impossível
esse comitê central gerenciar a economia e fazê-la produzir de forma otimizada. Hans-Hermann Hoppe criticou abertamente
essa lógica hayekiana. Qual a sua
postura em relação a esse debate?
de Soto: Você explicou bem. Eu sempre quis fazer uma síntese entre esses
dois raciocínios porque ambos são corretos.
Logo, um debate entre eles não é necessário. O ponto de vista de Mises (e de Rothbard e Hoppe)
e o de Hayek são complementares.
Mises
entendeu perfeitamente bem que, se não houver propriedade privada sobre os
fatores de produção e um livre mercado no qual eles possam ser comercializados,
será impossível determinar preços de mercado para esses fatores. Consequentemente, o cálculo econômico, que é
o que possibilita a produção e toda a racionalidade da economia, deixa de
existir.
Porém,
o próprio Mises também deixou claro que essa ausência de preços
impossibilitaria aquilo que ele chamou de "divisão intelectual do
trabalho". Os preços estabelecidos pelo
mercado permitem que os empreendedores descubram novas informações sobre o
atual estado do mercado e utilizem esses conhecimentos recém-adquiridos para
aproveitar novas oportunidades de lucro.
É essa busca pelo lucro que os leva a atuar de forma empreendedora,
comprando fatores de produção a preços baixos, utilizando-os para transformar
matéria-prima em bens de consumo, e vendendo o produto final a preços mais altos. Como o próprio Mises disse:
O que possibilita o surgimento do lucro é a ação
empreendedorial em um ambiente de incerteza.
Um empreendedor, por natureza, tem de estar sempre estimando quais serão
os preços futuros dos bens e serviços por ele produzidos. Ao estimar os preços futuros, ele irá
analisar os preços atuais dos fatores de produção necessários para produzir
estes bens e serviços futuros. Caso ele
avalie que os preços dos fatores de produção estão baixos em relação aos
possíveis preços futuros de seus bens e serviços produzidos, ele irá adquirir
estes fatores de produção. Caso sua
estimação se revele correta, ele auferirá lucros.
Portanto, o que permite o surgimento do lucro é o fato de
que aquele empreendedor que estima quais serão os preços futuros de alguns bens
e serviços de maneira mais acurada que seus concorrentes irá comprar fatores de
produção a preços que, do ponto de vista do estado futuro do mercado, estão
hoje muito baixos. Consequentemente, os
custos totais de produção -- incluindo os juros pagos sobre o capital investido
-- serão menores que a receita total que o empreendedor irá receber pelo seu
produto final. Esta diferença é o lucro
empreendedorial.
Portanto,
segundo Mises, é a existência de preços de mercado o que permite a divisão
intelectual do trabalho, a apreensão de informações e todo o subsequente
processo racional de produção. Sem
preços de mercado não há cálculo econômico porque a criação e a transmissão de
conhecimento empreendedorial necessário para coordenar a sociedade ficam
bloqueadas. Esse argumento de Mises
complementa o de Hayek.
Hayek
se concentrou no segundo argumento, o da dispersão de informação, muito
provavelmente porque queria se defender dos ataques de Oskar Lange e dos neoclássicos,
que diziam que, se o cálculo econômico era impossível em termos estritamente
computacionais por causa da ausência de preços, então bastava que os
planejadores centrais criassem equações matemáticas que simulassem corretamente
as condições vigentes de mercado, o que possibilitaria determinar oferta,
demanda e preços, fazendo com que todo o processo produtivo magicamente se
tornasse racional.
Portanto,
a posição de Mises e a de Hayek são complementares. Mises, ao se concentrar na inexistência de
preços de mercado, deixou claro que a consequência do socialismo é o bloqueio da
divisão intelectual do trabalho, que é justamente o argumento de Hayek.
IJM: De maneira resumida, quais são os
erros da teoria keynesiana ao analisar os ciclos econômicos?
de Soto: O principal erro da teoria
keynesiana advém do fato de que Keynes não possuía nenhuma teoria sobre a estrutura do capital da
economia, que são todos os estágios da cadeia de produção de uma economia,
todas as etapas sucessivas para a produção de um bem. Ele jamais explicou como a expansão monetária
altera todo esse arranjo estrutural, como ela altera os preços de determinados
setores em relação aos preços de outros setores, fazendo com que haja mais
investimentos naqueles setores onde o dinheiro recém-criado está entrando
primeiro. Logo, Keynes não possui uma
teoria economicamente lógica para explicar o fenômeno dos ciclos econômicos.
Keynes
também não aceitava que, durante uma recessão, os empreendedores podem
continuar obtendo lucros mesmo que suas vendas diminuam ou fiquem estagnadas:
eles têm de reduzir seus custos. Para Keynes,
a única maneira de corrigir esse desarranjo durante uma recessão era
estimulando a demanda agregada, algo que apenas perpetua o desequilíbrio e
atrasa a recuperação.
Keynes
também não entendeu o funcionamento do processo secular de acumulação de
capital e investimento, o qual sempre dependeu da poupança -- isto é, a
abstenção do consumo. Esse processo
sempre funcionou da seguinte forma: a poupança diminui o consumo imediato e com
isso faz com que fatores de produção (mão-de-obra e bens de capital) que até
então estavam sendo utilizados por aquelas empresas mais voltadas para bens de
consumo final sejam liberados para ser utilizados por aqueles setores mais
intensivos em capital, que estão mais afastados dos bens de consumo final. Esse movimento ocorre porque a redução do
consumo faz com que os preços dos bens de consumo final caiam, o que torna a
mão-de-obra desse setor relativamente onerosa.
Logo, fatores de produção são desviados para os setores mais intensivos
em capital justamente para produzir os bens de capital que irão substituir essa
mão-de-obra relativamente onerosa dos setores de bens de consumo final. Essa maior produção de bens de capital leva a
uma maior produtividade e a um aumento na oferta de bens de consumo no futuro,
elevando o padrão de vida das pessoas.
Foi assim que a humanidade se desenvolveu durante toda a história
capitalista.
Por
não entender esse processo, Keynes imaginou ser fácil abreviar essas etapas e
acelerar magicamente o crescimento econômico: bastava estimular a demanda
agregada, com o governo gastando, incorrendo em déficits e mantendo os juros em
níveis baixos.
Keynes
-- e isso pode surpreender muito gente -- tinha um conhecimento econômico
extremamente limitado. Ele estudou
economia durante apenas um semestre com Alfred Marshall. É penoso que uma pessoa tão ignorante tenha
tido uma influência tão grande na evolução do pensamento econômico. Pelo menos até agora.
IJM: Aproveitando o gancho, por que o
pensamento keynesiano é tão preponderante nas universidades de todo o mundo? Ou, colocando de outra forma, por que o
pensamento austríaco não tem grande presença na academia?
de Soto: A maioria dos professores universitários
se mantém aferrada aos velhos vícios do cientificismo. E a razão essencial é que, apesar das
aparências, é muito mais fácil construir modelos econômicos utilizando uma
abordagem estática. Como costumava dizer
Mises, dado que as mentes realmente férteis e criativas são muito escassas, a
tendência é que a maioria dos acadêmicos lamentavelmente busque refúgio naquilo
que é fácil: a manipulação de dados e a construção de modelos estáticos e
reducionistas, que são expressos em termos matemáticos. Ignora-se completamente o fato de que a
ciência econômica possui uma dimensão criativa, especulativa e dinâmica, a qual
não pode ser reduzida a termos matemáticos, e muito menos expressada
acuradamente por meio deles. Não há constantes na ação humana. Há criatividade, mudanças, escolhas e
descobertas, mas não há parâmetros fixos que permitam a criação de funções
matemáticas.
Vai
aí, aliás, um complexo de inferioridade perante o mundo da física: os êxitos
dessa ciência natural fizeram com que os economistas se pusessem a copiar seus
métodos na crença de que poderiam conseguir resultados semelhantes.
Por
fim, as universidades estão apenas respondendo às demandas por engenharia
social. O maior pecado de nosso tempo é
a estatolatria. Todos os cidadãos
recorrem ao estado para que este resolva todos os problemas. Logo, surge uma demanda por um exército de
engenheiros sociais cuja função é justamente manipular de forma caprichosa
todas as variáveis das equações matemáticas estáticas com o alegado intuito de
alcançar objetivos ótimos. As
universidades atuais, fartamente financiadas com dinheiro público, apenas se
dedicam a formar esses tipos de especialistas em intervenções, os quais
fornecem justificativas científicas para o aumento do poder do estado.
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