"Criamos um arranjo educacional no qual
as crianças devem suprimir seus instintos naturais — os quais as estimulam a
estar no controle do próprio aprendizado — para, em vez disso, simplesmente
seguirem automaticamente métodos e caminhos criados para elas por adultos, e os
quais não levam a lugar nenhum."- Peter Gray, autor de Livre
para Aprender.
Para a grande maioria da população, o homeschooling
(ensino domiciliar) é algo tão estranho e radical que nem sequer é cogitado
como uma possibilidade, quiçá como algo que possa ser viável e benéfico.
Apesar de ter relevância estatística ainda
muito pequena em termos da porcentagem da população que o pratica ou o defende,
o homeschooling tem crescido em visibilidade no
Brasil. Do ponto de vista mais prático, esse crescimento, mesmo que
perceptível, ainda esbarra em diversos obstáculos como, por exemplo, a escassez
de recursos pedagógicos e a falta de uma cultura e de uma mentalidade favoráveis
ao homeschooling. Acima de tudo, esbarra nas questões legais e até mesmo em sua
interpretação equivocada.
Seria uma tarefa hercúlea tentar escrever algo
abrangente e detalhado sobre homeschooling em formato de artigo. Assim sendo, o
objetivo aqui é tentar esclarecer os pontos que são mais frequentemente
distorcidos ou que geram confusão.
Fundamentos da educação convencional
O atual paradigma educacional é fundamentado em
algumas premissas gerais, resumidas a seguir:
a) existe uma
idade ótima a partir da qual o aluno deve ser ensinado;
b) tal ensino
deve ser ministrado por profissionais qualificados e munidos de ferramentas e
teorias pedagógicas;
c) esse
arcabouço pedagógico é inacessível ao "cidadão comum";
d) alunos da mesma
idade têm (aproximadamente) a mesma capacidade e bagagem intelectual e,
portanto, este passa a ser um parâmetro natural de segregação;
e) essa forma
de divisão é a ideal e a única que permite a "socialização" dos alunos.
É importante explicitar essas características do
sistema educacional vigente porque muitos dos equívocos que rondam o homeschooling
têm a ver com uma visão romantizada do funcionamento desse sistema, de modo que
qualquer tentativa de se distanciar desse padrão é vista como uma atitude
retrógrada e incapaz de atender às necessidades educacionais básicas das
pessoas em formação.
Com isso em mente, abaixo são listados os três
pontos de maior contenda quando se trata do homeschooling.
O homeschooling não é um experimento
educacional alternativo à educação praticada nas escolas
Apesar de diversos relatos de educação coletivizada
compulsória ao longo da história, a origem do sistema educacional atual em
quase todos os países do mundo pode ser rastreada até o
século XVIII, na Prússia, um dos inúmeros pequenos estados que viriam a se
unificar sob a atual Alemanha.
A característica notória que colocava a Prússia
separada das demais nações da época era a exacerbada tendência militarista,
normalmente sob pretextos nacionalistas. Após ser subjugada durante a expansão
napoleônica, a Prússia passou por profundas reformas com o objetivo de evitar
novas subjugações.
As primeiras mudanças notáveis foram no campo da
educação. Dada a atmosfera militarista na Prússia, o objetivo da escola
prussiana era formar soldados, independentemente do setor da sociedade em que
fossem atuar. Como disse Murray Rothbard em suas
pesquisas sobre o tema:
Com o sistema de escolas obrigatórias surgiram
renascimento e a grande expansão do exército, em particular a imposição do
serviço compulsório militar universal.
Um dos objetivos
do método prussiano era a formação de uma sociedade altamente "educada",
que nada mais era do que um sistema pedagógico em que o individualismo daria
espaço à uniformidade e à padronização. A espontaneidade deveria ser
substituída pela obediência. Tudo isso era supervisionado por uma seleta casta
de intelectuais com o aval do monarca.
Esse espírito é perfeitamente observável na dinâmica
e nos ambientes escolares: cadeiras enfileiradas; alunos uniformizados e
sentados passivamente em suas carteiras escolares obedecendo a seus professores;
aulas com duração padronizada e demarcadas por sinais sonoros; ambiente maçante;
filas e ênfase na obediência e submissão etc . Até uma visita ao banheiro ou ao
bebedouro requer a permissão do seu superior.
Ou seja: a educação que todos nós conhecemos hoje
surgiu há cerca de dois séculos. Por outro lado, o ancestral humano existe
há cerca de 2,5 milhões de anos, ao passo que se acredita que o homo
sapiens tenha por volta de 200 mil anos. Logo, a pergunta inevitável é:
como as pessoas eram educadas antes das atuais escolas, ou seja, durante
praticamente toda a nossa história?
É óbvio que não se via necessidade de ensinar — mesmo
porque não havia grande conhecimento disponível — disciplinas especializadas
como a química e a geografia, exceto por uns poucos aspectos de importância
prática, mas que não eram nem sequer racionalizados à luz do método científico
(que é também uma realização relativamente recente).
Os humanos eram educados em casa, primariamente por
seus pais e pelas pessoas mais próximas, em termos familiares e geográficos.
Conforme o corpo e a complexidade do conhecimento foram sendo ampliados, foi se
ampliando também o escopo da educação fornecida às crianças.
Não é incomum na literatura de séculos anteriores à
expansão global do método prussiano relatos da presença de tutores e de
mentores, que tinham como objetivo ensinar e direcionar os estudos de seus
pupilos. É bem verdade que essa era uma prática restrita às castas mais altas
da sociedade, mas vale lembrar que o conhecimento da época não tinha grande
valor prático — isto é, não se esperava que um camponês pudesse aumentar
drasticamente a sua produção na lavoura por meio dos estudos.
Assim, as classes mais baixas não tinham
grandes aspirações intelectuais.
O período de tempo de pouco mais de um século de
educação coletivizada e compulsória, nos moldes que temos hoje, é
insignificante na escala de tempo em que se dá a existência da humanidade. Durante
efetivamente toda a sua história, o homem foi educado em casa por aqueles
diretamente relacionados a ele.
Portanto, se um destes modelos educacionais deve ser
encarado como um experimento, então certamente este deveria ser o atual.
Você não é suficientemente qualificado
para educar seus filhos
Há diversas formulações desta frase, mas, no fundo,
todas elas se resumem a tentar convencer os pais de que eles não são capazes de
educar seus filhos.
Afinal, de acordo com o senso comum, em conjunto com
toda a propaganda ao redor do tema, a dádiva da educação não pode ser encontrada
em reles mortais, pois ela é um monopólio que só pode ser obtido pelos
iluminados que optaram por encarar longos e tortuosos anos de faculdade — e,
às vezes, seguidos de pós-graduação (que, a bem da verdade, é cursada na
esmagadora maioria dos casos apenas por quem almeja cargos administrativos, sem
muita relação com considerações pedagógicas).
Caso você não seja um seleto membro deste grupo, não
há escolha a não ser se conformar com o fato de que seus filhos estarão sendo
mais bem formados em uma escola.
No entanto, eis a realidade: se você chegou até este
ponto do texto, assume-se que saiba ler. E que, por conseguinte, também saiba
escrever. Se esse é o caso, considere-se apto a educar seus filhos.
Vou ainda mais longe: se é esse o seu caso, o homeschooling
não apenas é possível, como também é muito superior à educação pública.
Explico: ao passo que pesquisas
apontam que as turmas deveriam ser menores do que 20 alunos, a realidade
brasileira são turmas de mais de 30 alunos. E não é incomum vermos salas de
aula com mais de 40 alunos. O professor, ainda que fosse magnanimamente bem
intencionado, é incapaz de manter o controle e dar a atenção necessária a cada
criança. Além disso, a rígida estrutura cronológica da escola, em que as aulas
têm uma duração predeterminada, não se adapta às necessidades de cada aluno.
Alunos mais lentos — ou menos — tendem a ficar desencorajados ou entediados.
Não há espaço na escola para um aluno que queira se aprofundar em um
determinado assunto além daquilo que o professor está disposto a lecionar ou do
que é previsto pelo programa pedagógico, criado por profissionais ou por
burocratas que não têm nenhuma ciência das necessidades e particularidades de
cada criança.
Por outro lado, o homeschooling permite um altíssimo
grau de flexibilidade na educação das crianças, indo desde a escolha do método,
de materiais e de currículos a até mesmo os horários e as atividades. Tão
importante quanto esse aspecto é o fato de que, ao contrário da interação um
tanto impessoal entre o professor e o aluno, ninguém tem maior interesse e
incentivo em fazer com que seus filhos sejam bem sucedidos quanto os pais.
Essa conjunção de liberdade pedagógica e vínculo
afetivo é algo que não pode ser reproduzido em ambiente escolar, independentemente
da sua qualidade ou de ser pública ou particular — no final, pouco importa a gestão
da escola, pois os currículos são impostos pelo Ministério da Educação.
Se o pai interessado em homeschooling sabe ler e
escrever, então ele provavelmente tem acesso a algum material didático que
cobre esses tópicos (esse tipo de material pode ser facilmente encontrado na
internet), assim como os temas mais simples e fundamentais, como aritmética,
que costumam ser de fácil entendimento e para os quais há uma grande variedade
de opções.
Ninguém espera (e nem deveria esperar) que os pais
que praticam homeschooling sejam especialistas em todas as áreas do
conhecimento, o que nos leva a outro ponto em que o homeschooling supera a
educação "convencional": no homeschooling, o foco está em aprender a estudar e
a formar autodidatas, contrariamente ao modelo de aprendizado passivo em que a criança
se senta em uma sala de aula e espera que o professor transfira, por osmose,
seu conhecimento.
Assim, quando as crianças atingem uma idade em que
começam a se interessar por assuntos e abordagens mais sofisticados, elas
normalmente já aperfeiçoaram a prática de estudar por conta própria, de modo
que o papel dos pais passa a ser auxiliar na busca por material didático de
acordo com as necessidades das crianças e a supervisionar o progresso de seus
filhos.
O homeschooling, por fim, não requer profunda
formação acadêmica, mas sim planejamento e dedicação. Glenn Doman, em seu
famoso livro Como
Ensinar seu Bebê a Ler, traz diversos exemplos de pais com pouca
escolaridade formal que foram bem sucedidos em ensinar seus filhos a ler muito
antes da idade escolar (veja
aqui um vídeo em português sobre o método).
Hoje, com a internet, há um sem número de métodos,
práticas e materiais de fácil acesso que foram consolidados ao longo de
décadas/séculos (infelizmente, a maioria em língua inglesa), muitos dos quais
de custo baixo ou mesmo gratuitos.
"Mas e a socialização?"
Que o atual sistema educacional é completamente
ineficiente não é novidade para ninguém. Assim como a maioria da população tem
algo a se queixar da democracia, e mesmo assim ela se perpetua por ser "um mal
necessário", igualmente é a visão da população sobre o sistema educacional
atual.
Quando confrontados com essa realidade, e com o homeschooling
sendo apresentado como substituto viável, dúvidas quanto à qualidade do ensino
se dissipam e o último subterfúgio é costumeiramente algum tipo de
desconfiança e ceticismo em relação à capacidade de crianças educadas em casa
serem adequadamente socializadas.
A tal socialização que supostamente só pode ocorrer
na escola tem um efeito colateral inerente à forma como ela é estruturada: o bullying. O bullying, ao contrário do que se noticia nos dias de hoje, não é
uma epidemia ou um produto da modernidade, mas sim uma constante inseparável da
escola. Talvez a tecnologia atual nos tenha deixado mais cientes desse
problema, mas não tem como não haver bullying
se pessoas são forçadas a conviver com outras com as quais não têm nenhum tipo
de afinidade ou ponto em comum.
Para piorar, a escola torna os pais mais negligentes,
pois ela se auto-atribui obrigações que são dos pais, e os pais, por sua vez,
se tornam cada vez mais alheios à educação e à formação de seus filhos, pois já
terceirizaram essa função para a escola.
Não se está dizendo, obviamente, que a escola exclui
qualquer tipo de socialização, mas sim que a "boa" socialização que ela pode
proporcionar é inseparável do bullying.
E aos que contra-argumentarem dizendo que isso de não
é de todo ruim, pois não devemos ser "super protetores", cito um trecho de
um artigo de Matt Walsh, veemente detrator do sistema
educacional vigente, em particular das escolas públicas:
Ou seja, eu vou mandar meu filho para
uma escola logo em seus primeiros anos de formação, vou observar seus colegas tentarem
estraçalhá-lo emocionalmente pela próxima década, e então, no fim de tudo isso,
você irá me dizer que ele ao menos está socializado? É isso mesmo? E o que
vem depois? Deveria eu entrar em uma banheira cheia de esgoto e hepatite para
melhorar minha "saúde e higiene"? Obrigado, mas passo. Nos dois casos.
Dito isso, nos EUA, onde o homeschooling é uma
prática comum, é bastante raro uma família praticá-lo em uma espécie de vácuo
social. A maioria das famílias praticantes é afiliada a grupos e cooperativas nos
quais as crianças participam de diversas atividades para promover a
socialização. Isso, entretanto, não implica que essa interação seja livre de
potenciais conflitos.
Em primeiro lugar, as crianças são frequentemente
incentivadas a lançar mão de formas pacíficas de resolução de conflitos. Caso ocorra
um evento irreconciliável, sempre existe a possibilidade de os pais
simplesmente se desligarem do grupo e buscarem outro, o que raramente ocorre. Por
outro lado, apenas se desligar de uma escola e ir para outra tende a ser apenas
um paliativo. Os problemas inerentes à educação e ao bullying continuam intactos.
Outro ponto positivo destes grupos de homeschooling,
e que tem a ver com o tópico anterior, é que eles permitem que pais com
conhecimento específico em certas áreas sirvam como tutores de outras crianças.
É bastante comum em grupos de homeschooling eventos e atividades como feiras de
ciências, corais, bandas, recitais, oficinas de artesanato etc.
Para
concluir
Vale ressaltar o óbvio: defensores do homeschooling não
estão pedindo a abolição do sistema educacional vigente. Eles querem apenas a
liberdade de não serem obrigados a enviar seus filhos para essas fábricas de coerção
e de entorpecimento cerebral que são as escolas atuais. (Pela legislação
atual, se você optar por educar seu filho em casa, poderá ir para a cadeia).
Vale repetir as palavras de John Holt, mundialmente
famoso educador e defensor do homeschooling,
em seu best-seller Como as Crianças
Aprendem:
Queremos acreditar que estamos enviando
nossas crianças para a escola para que elas aprendam a pensar. Mas o que
realmente estamos fazendo é ensinando-as a pensar de maneira errada. Pior:
estamos ensinando-as a abandonar uma maneira natural e poderosa de pensar e a
adotar um método que não funciona para elas e o qual nós mesmos raramente
usamos.
Nós estamos tentando convencê-las de
que, ao menos dentro da escola — ou mesmo em qualquer situação em que
palavras, símbolos ou pensamento abstrato estejam envolvidos —, elas
simplesmente não podem pensar. Devem apenas repetir.
No final, a maior e mais duradoura lição trazida
pelo nosso sistema escolar é que aprender é algo maçante, que deve ser evitado
ao máximo possível.
Apesar de todas as barreiras impostas ao homeschooling,
seja a carência de material adequado em português, a legislação relacionada que
é mal delineada e a ignorância geral sobre o tema, ele vem crescendo a passos
largos no Brasil. Ainda há um longo caminho a ser percorrido, e os defensores
da liberdade devem sempre tentar lançar um pouco de luz para remediar a cultura
de rejeição instintiva e infundada a essa antiga prática de eficácia
e sucesso
comprovados.
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Leia
também:
Como a escola acaba com a
criatividade e com o raciocínio próprio
O sistema escolar moderno
prolonga a adolescência e atrasa as responsabilidades da vida adulta
Sim, a escola está
destruindo gerações e causando estragos profundos
Dica aos jovens: sejam ambiciosos
e parem de perder tempo com o sistema educacional convencional
O entusiasmo e a obsessão
são suas mais decisivas habilidades