Uma das características mais extraordinárias de O
Manifesto Comunista é sua honestidade.
Mesmo quem conhece bem a biografia
de Marx — repleta de apologias a extermínios em massa de "raças inferiores"
e a ditaduras — se surpreende com sua notável franqueza em relação aos
objetivos do comunismo.
Com efeito, é possível argumentar que esta audácia
passou a permear toda a psique comunista.
No último
parágrafo do manifesto, Marx resume toda sua posição: "Os comunistas
rejeitam suavizar suas idéias e objetivos. Declaram abertamente que os seus
fins só podem ser alcançados pela violenta subversão de toda a ordem social vigente.
Que as classes dominantes tremam de medo perante uma revolução comunista!".
Assim como em Mein
Kampf, de Hitler, os leitores são apresentados a uma visão pura e nada
diluída da ideologia do autor (por mais sombria que seja).
Começa
com a propriedade
O manifesto de Marx tornou-se famoso por resumir
toda a teoria do comunismo em uma única frase: "Abolição da propriedade
privada". Ao final do segundo
capítulo, ele inclusive fornece as 10 medidas necessárias para tornar um
país comunista. Diz ele:
O
proletariado usará sua supremacia política para expropriar, de maneira gradual,
todo o capital da burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção
nas mãos do Estado — isto é, do proletariado organizado como classe dominante.
[...]
Naturalmente,
isto só poderá ocorrer por meio de intervenções despóticas no direito de
propriedade e nas relações de produção burguesas. Por meio de medidas,
portanto, que economicamente parecerão insuficientes e insustentáveis, mas que,
no decurso do movimento, levam para além de si mesmas, requerendo novas agressões
à velha ordem social.[...]
Estas
medidas serão, obviamente, naturalmente distintas para os diferentes países.
Não
obstante, nos países mais avançados, poderão ser aplicadas de um modo
generalizado.
1. Expropriação da propriedade sobre a
terra e aplicação de toda a renda obtida com a terra nas despesas do Estado.
2. Imposto de renda fortemente progressivo.
3. Abolição de todos os direitos de
herança.
4. Confisco da propriedade de todos os
emigrantes e rebeldes.
5. Centralização do crédito nas mãos do
Estado, por meio de um banco nacional com capital do Estado usufruindo
monopólio exclusivo.
6. Centralização, nas mãos do Estado, de
todos os meios de comunicação e transporte.
7. Ampliação das fábricas e dos
instrumentos de produção pertencentes ao Estado; arroteamento das terras
incultas e melhoramento das terras cultivadas, tudo de acordo com um plano
geral.
8. Trabalho obrigatório para todos.
Criação de exércitos industriais, em especial para a agricultura.
9. Unificação do trabalho agrícola e
industrial. Abolição gradual de toda e qualquer distinção entre cidade e campo
por meio de uma distribuição equilibrada da população ao longo do território do
país.
10. Educação gratuita para todas as
crianças nas escolas públicas. Eliminação do trabalho infantil nas fábricas em
sua forma atual. Unificação
da educação com a produção industrial etc.
Mas estes famosos 10
pontos do manifesto comunista — que vão desde a abolição da propriedade até a
instituição do trabalho compulsório e da reorganização da distribuição
demográfica — ainda não englobam todo o pensamento de Marx.
Com efeito, a abolição da
propriedade privada está longe de ser a única coisa que o filósofo acreditava
que tinha de ser abolida da sociedade burguesa para permitir a marcha do
proletariado rumo à utopia.
Em seu manifesto, Marx
enfatizou cinco outras idéias e instituições que também tinham de ser
erradicadas.
1. A Família
No
segundo capítulo, Marx admite que a abolição da família — uma instituição
burguesa — é um tópico espinhoso, mesmo para os revolucionários. "Abolição da
família! Até os mais radicais se assustam com este propósito infame dos
comunistas", escreve ele.
Em seguida, ele explica
que os oponentes desta ideia são incapazes de entender um fato crucial sobre a
família.
"Sobre quais fundamentos
se assenta a família atual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o
proveito privado. Em sua forma completamente desenvolvida, a família
tradicional é uma instituição burguesa e existe somente na burguesia", afirma
Marx.
Para melhorar a situação,
abolir a família seria relativamente fácil tão logo a propriedade da burguesia
fosse abolida. "A família burguesa será naturalmente eliminada com o eliminar
deste seu complemento, e ambos desaparecerão com o desaparecimento do capital."
2. Individualidade
Marx acreditava,
corretamente, que o indivíduo e a individualidade eram uma força de resistência
ao igualitarismo que ele queria impor.
Consequentemente, também no
segundo capítulo, Marx afirma que o "indivíduo" — que para ela era "o
burguês, o cidadão de classe média detentor de propriedades" — terá de ser
"retirado do caminho, suprimido, e ter sua existência impossibilitada".
Segundo Marx, a
individualidade é uma construção social da sociedade capitalista e está
profundamente arraigada na própria noção de capital.
"Na sociedade burguesa, o
capital é independente e possui individualidade, ao passo que a pessoa é
dependente e não possui individualidade", escreveu ele. "E a abolição deste
estado de coisas é rotulada pela burguesia de abolição da individualidade e da
liberdade! E com razão. A abolição da individualidade burguesa, da
independência burguesa e da liberdade burguesa sem dúvida são os nossos
objetivos."
3. Verdades eternas
Marx aparentava não
acreditar que existisse qualquer outra verdade além da luta de classes. Tudo
aquilo que as pessoas comuns consideravam ser verdades era, segundo Marx,
apenas imposições da burguesia.
Para Marx, a luta de
classes era a única verdade inquestionável. E era ela o que determinava todas
as outras "verdades".
"As ideias dominantes de
cada época sempre foram apenas as ideias da classe dominante", disse
ele. "Quando o
mundo antigo estava em declínio, as religiões antigas foram sobrepujadas pelo
cristianismo. Quando as ideias cristãs sucumbiram, no século XVIII, às ideias
racionalistas, a sociedade feudal travou sua luta de morte com a burguesia, que
então era revolucionária."
Ele reconheceu que esta
ideia soaria radical demais para seus leitores, principalmente quando se
considera que o comunismo não buscava modificar a verdade, mas sim suprimi-la. Porém,
argumentou Marx, essas pessoas simplesmente não estavam tendo a visão global
das coisas.
Dirão os céticos: "As ideias
religiosas, morais, filosóficas, políticas, jurídicas, etc., sofreram várias
modificações no decorrer da história. Entretanto, a religião, a moralidade, a
filosofia, a ciência política, e o direito sempre sobreviveram a estas
mudanças. Além disso, existem verdades eternas, como Liberdade, Justiça etc.,
que são comuns a todas as camadas sociais. Já o comunismo que abolir as
verdades eternas, abolir todas as religiões e toda a moralidade, em vez de
apenas tentar configurá-las de novo. Consequentemente, o comunismo age em
contradição a toda a experiência histórica passada."
Ora, mas a que se reduz esta acusação? Ela
simplesmente afirma e confessa que toda a história da sociedade se baseou na evolução
dos antagonismos de classes, antagonismos que assumiram diferentes formas em
diferentes épocas.
Porém, qualquer que fosse a forma
assumida, um fato é comum a todas as épocas: a exploração de uma parte da
sociedade pela outra. Não é de se admirar, portanto, que a consciência social das
épocas passadas, a despeito de toda a multiplicidade e variedade de
acontecimentos, se manifeste sempre dentro de padrões similares e de acordo com
idéias gerais. E isso só irá desaparecer por completo com o desaparecimento
total dos antagonismos de classe.
4. Nações
"Os comunistas", disse
Marx, "são repreendidos por seu desejo de abolir países e nacionalidades".
Mas esses críticos são incapazes de entender a natureza do proletariado, disse
ele.
Os operários não têm pátria. Logo, não é possível
tirar deles aquilo que eles não têm. Ademais, dado que o proletariado tem
primeiro de conquistar a dominação política, de ascender à classe dominante da
nação, e finalmente se tornar ele próprio a representação da nação, então
podemos dizer que, até o momento, ele ainda é nacional, mas não no sentido
burguês da palavra."
Adicionalmente, o próprio
Marx admitiu que, por causa do capitalismo, as hostilidades entre as pessoas de
diferentes culturas e criações estavam diminuindo. Assim, quando o proletariado
chegasse ao poder, não mais haveria necessidade de existir nações, disse ele.
As diferenças nacionais e o antagonismo entre as
pessoas de diferentes culturas estão, diariamente, desaparecendo cada vez mais
por causa do desenvolvimento da burguesia, da liberdade de comércio, do mercado
mundial, e da uniformidade do modo de produção industrial, que gera condições uniformes
de vida entre as pessoas.
A supremacia do proletariado fará com que tudo isso
desapareça ainda mais rápido.
5. O
passado
Marx via a tradição e os
costumes como uma ferramenta de dominação da burguesia. Aderência aos costumes
e respeito ao passado serviam meramente para distrair o proletariado, atrasando
sua busca por emancipação e supremacia. Os tradicionalistas — "reacionários"
— apegados ao passado e aos costumes agiam assim unicamente para manter os
instintos revolucionários do proletariado sob controle.
"Na sociedade burguesa", escreveu
Marx, "o passado domina o presente; na sociedade comunista, o presente domina o
passado".
Talvez as sementes da
nossa atual era da pós-verdade
estejam aí.