segunda-feira, 6 dez 2021
À
exceção daquelas nações que adotaram o socialismo, é difícil encontrar um
exemplo de país cuja economia tenha sido mais espetacularmente destruída pelo
seu governo do que a Argentina.
No
início do século XX, a Argentina era o 10º país mais rico do mundo em termos
per capita. Reza a lenda que, naquela
época, a expressão "tão rico quanto um argentino" era comum e frequentemente
utilizada por aristocratas britânicos que tentavam casar suas filhas com
argentinos ricos. Entre 1860 e 1930, o
país enriqueceu acentuadamente em decorrência, entre outras coisas, da
exploração das férteis terras dos pampas.
Os investimentos estrangeiros eram livres e diversificados, oriundos da
França, da Alemanha, da Bélgica e, majoritariamente, da Grã-Bretanha. Indústrias e ferrovias foram construídas com
capital estrangeiro. Os altos salários
atraíram vários imigrantes, principalmente italianos, espanhóis, alemães e
franceses. Em 1899, após algumas décadas
de instabilidade financeira e bancária, o país retornou ao padrão-ouro e,
durante 14 anos, cresceu a uma taxa anual de 7,7%.
Durante
as três primeiras décadas do século XX, a Argentina ultrapassou
o Canadá e a Austrália não somente em termos de população, mas também em termos
de renda total e renda per capita. Nesta
época, a famosa loja de departamentos Harrods, de Londres, abriu uma filial em Buenos Aires, sua única filial em todo o
mundo.
A
partir de 1930, no entanto, a coisa começou a degringolar. Em termos macroeconômicos, a Argentina era,
até então, um dos mais estáveis e sólidos países do mundo. Mas o advento da Grande Depressão nos EUA,
que afetou seriamente o comércio mundial — e as exportações argentinas —,
alterou este equilíbrio. Instabilidades
políticas levaram a um golpe militar em 1930.
De 1930 até os anos 1980, houve uma sequência de governos populistas e
juntas militares que se revezavam no poder.
Estes sucessivos governos, capitaneados pelas teorias de Raúl Prebisch,
adotaram uma série de políticas protecionistas e de substituição de importações
com o objetivo de alcançar a quimera da 'autossuficiência', um devaneio que
ainda hoje excita praticamente todos os desenvolvimentistas (muitos deles estão
em Brasília).
Oficialmente,
esse experimento protecionista terminou em 1976, quando uma junta militar sob o
comando de Jorge Rafael Videla decidiu abrir um pouco a economia. Obviamente, acostumadas a décadas de
protecionismo, várias indústrias argentinas sucumbiram perante a concorrência
externa, o que fez com que o governo assumisse suas dívidas. Em paralelo a este setor industrial
ineficiente, os gastos governamentais em total descontrole (financiados pela
simples impressão de dinheiro) e várias medidas populistas de aumentos
salariais levaram a uma crônica inflação de preços, que chegou a 800% ao ano.
Alguns
anos depois, em 1982, um cavalheiro chamado Leopoldo Galtieri
teve a brilhante ideia de desviar a atenção dos problemas econômicos invadindo
as ilhas Falkland (Las Malvinas para
os argentinos), o que jogou o país em guerra contra os britânicos. Tal esforço de guerra, além de vidas humanas,
serviu apenas para aumentar o endividamento do governo argentino e,
consequentemente, a inflação monetária para financiar este endividamento. Humilhada pela derrota, a ditadura militar
terminou em dezembro de 1983, com a eleição de Raúl Alfonsín. Veja o histórico inflacionário deste último
período militar (a menor inflação anual foi de 82%, em fevereiro de 1981).

Gráfico 1: Taxa
de inflação de preços anual, 1976-1983
Em
decorrência desta escalada inflacionária, o governo Alfonsín criou, em junho de
1985, uma nova moeda, o austral (a primeira moeda argentina que não tinha o peso em seu nome). Mas a criação da nova moeda — plano este,
aliás, que serviu de inspiração ao Plano Cruzado — foi feita daquela maneira tipicamente
heterodoxa: o governo simplesmente cortou zeros, congelou preços das tarifas
públicas e da cesta básica, e controlou rigidamente os salários do setor
privado. No primeiro momento, exatamente
como também ocorreu com o Plano Cruzado, os preços ficaram sob controle e a
popularidade do governo disparou.
Na
melhor fase do plano, a inflação de preços ficou em "apenas" 50% ao ano. Porém, e obviamente, o governo em momento
algum abriu mão de continuar imprimindo dinheiro e, assim que os preços
começaram a ser descongelados, tudo voltou a ser como era antes. Para complicar, como o governo havia
contraído várias dívidas perante o FMI, ele também recorria à impressão de austrais
para comprar dólares.
O
resultado desta vez não foi apenas uma típica inflação latino-americana, mas
sim uma hiperinflação que chegou a 200% ao mês (julho de 1989) e encerrou o ano
totalizando 5.000%. Quando os preços dos
serviços de utilidade pública dispararam e os argentinos foram para as ruas saquear
supermercados (maio e junho de 1989), Alfonsín renunciou.
Eis
o resultado da inflação de preços deste período:

Gráfico 2: taxa
de inflação de preços anual, 1984-1989
A era Menem
Reformas
Eleito
para assumir o poder dezembro de 1989, a posse de Carlos Menem foi antecipada
para julho por causa da baderna em que estava o país. Quando Menem assumiu a presidência, os gastos
públicos estavam em 36% do PIB e o déficit orçamentário do governo era de 7,6%
do PIB.
Em
17 de agosto de 1989, foi aprovada a Ley de Reforma
del Estado, que deu a Menem a autoridade para efetuar várias reformas
econômicas que ajudassem a acabar com a hiperinflação. As principais reformas foram o
descongelamento seguido da liberdade de preços, a abertura da economia ao
comércio internacional, aos investimentos estrangeiros e ao fluxo de capitais,
a reorganização do sistema tributário, a redução da burocracia e a privatização
de várias estatais — a telefônica Entel, a companhia aérea Aerolíneas
Argentinas, vários trechos rodoviários, vários canais de televisão, algumas
redes ferroviárias, a petrolífera YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales, cuja
privatização só foi completada em 1999), e a empresa de gás natural Gas del
Estado.
Como
de praxe, várias privatizações foram feitas às pressas — pois o governo estava
desesperado por recursos —, o que gerou vários esquemas de favorecimento,
irregularidades e corrupção.
Após
chegar ao insano valor anual de 20.000% em março de 1990, a inflação terminou o
ano em 1.344%

Gráfico 3: taxa
de inflação de preços anual, 1990
Mas
foi em abril de 1991 — sob o comando do ministro da economia Domingo Cavallo
— que a principal e decisiva medida econômica foi adotada: a reforma monetária
que culminaria na substituição do austral pelo peso. Mas o peso não seria uma nova moeda qualquer:
ele seria inflexivelmente igual a um dólar, valor este irrevogável e fixado por
lei. Esse regime monetário argentino
passou a ser chamado de regime de conversibilidade.
O
programa de conversibilidade foi implantado em duas etapas. Na primeira etapa, em abril de 1991, o Banco
Central argentino passou a funcionar como se fosse um Currency Board.
Currency Board
Para o leigo, o termo soa esquisito, mas realmente
não existe tradução definitiva para o português. Alguns traduzem como
Caixa de Conversão ou Agência de Conversão; outros traduzem como Conselho da
Moeda.
Apesar da ausência de um termo nacional, um Currency
Board é um dos arranjos monetários mais antigos e tradicionais do mundo,
perdendo apenas para o padrão-ouro. Aliás, era comum que o país que adotasse o
padrão-ouro o fizesse por meio de um Currency Board. O Brasil operou um Currency Board no
início do século XX, durante um de nossos efêmeros experimentos com o
padrão-ouro. O padrão-ouro da Argentina, que durou até 1929, também se
deu sob um Currency Board.
Hong Kong opera um Currency Board desde 1983.
Vários outros pequenos países utilizam exitosamente um Currency Board, entre
eles Bulgária, Bósnia e Herzegovina, as Ilhas Fakland, Gibraltar e Santa
Helena. Estônia, Letônia e Lituânia operaram regimes semelhantes a um
Currency Board até muito recentemente, quando resolveram adotar integralmente o
euro.
O princípio de operação de um Currency Board é
bastante simples e, quando obedecido ortodoxamente, muito eficaz. O
Currency Board é o arranjo que se implementa quando se quer adotar uma genuína
"âncora cambial", o que faz com que a moeda de um país se torne um
mero substituto de uma moeda estrangeira. A única função de um Currency
Board é trocar moeda nacional (que ele próprio emite) por moeda estrangeira, e
vice versa, a uma taxa fixa.
No caso específico da Argentina, o Banco Central
convertido em Currency Board tinha a função de trocar, sem custo e sem demora,
1 peso por 1 dólar e 1 dólar por 1 peso. Para cada dólar que entrasse no país,
o Currency Board emitiria um peso argentino em troca desse dólar. A operação
inversa ocorreria no caso de uma saída de dólar (peso argentino seria entregue
ao Currency Board que, em troca, enviaria o dólar para o destinatário
estrangeiro).
Ao agir assim, a taxa de câmbio está
irremediavelmente fixa. Se você quisesse vender 1 dólar por um valor
maior do que 1 peso para outra pessoa, esta preferiria simplesmente ir ao
Currency Board e lá trocaria 1 peso por 1 dólar. Ou seja, tal artifício é
totalmente eficaz em realmente fixar a taxa de câmbio.
Neste sistema, como a moeda nacional está totalmente
atrelada a uma moeda estrangeira, a variação da base monetária nacional se dá
estritamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos (saldo da
quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia nacional).
Em sua forma ortodoxa, este sistema não permite a
existência de um Banco Central, pois não deve haver nenhuma política
monetária. Trata-se de um sistema monetário totalmente passivo, em que a
base monetária do país varia estritamente de acordo com as reservas internacionais.
Sendo assim, dado que a base monetária do país não
pode ser maior do que a quantidade de reservas internacionais (no caso
argentino, o dólar), ela varia de acordo com a quantidade de moeda estrangeira
que entra e sai da economia em decorrência das transações internacionais do
país. Quando há um superávit nas transações internacionais, a base
monetária doméstica aumenta; quando há um déficit, diminui.
Em tese, como a quantidade de dólares nas reservas
internacionais é, por definição, igual ou superior à base monetária, é
impossível haver qualquer ataque especulativo, pois seria impossível exaurir as
reservas internacionais (a base monetária teria de ser toda mandada pra fora,
algo por definição impossível). Essa é a principal atratividade do sistema:
ele dá segurança aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita
desvalorização da moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles
quando fossem repatriar seus lucros.
Outra característica do Currency Board que ajuda a
aumentar a confiança do investidor estrangeiro é o fato de que, ao contrário de
um Banco Central convencional, um Currency Board não pode imprimir dinheiro à
vontade; ele só imprime moeda nacional se receber um valor equivalente em moeda
estrangeira. Logo, um Currency Board não pode comprar ativos nacionais e
nem títulos do governo; ele não faz política monetária.
Sendo assim, o governo não pode se financiar por
meio da inflação monetária. Isso obriga o governo a evitar déficits e a
manter um orçamento equilibrado (caso contrário, ele terá de aumentar impostos
ou se endividar, o que levaria a um aumento dos juros em toda a economia).
(Veja tudo sobre Currency Boards neste artigo.)
No entanto, ao mesmo tempo em que um Currency Board
é extremamente eficaz quando implantando ortodoxamente, ele cobra severas
punições quando seus pré-requisitos operacionais são desobedecidos. E foi
isso que a Argentina descobriu.
A reforma monetária
O
primeiro passo da Argentina, portanto, foi fazer o seu Banco Central operar
como se fosse um Currency Board.
No
dia 1º abril de 1991, o Banco Central da Argentina fixou a taxa de câmbio no
valor de 10.000 austrais por dólar (essa era a taxa de câmbio do dia). A partir daí, comprometeu-se a operar sob os
mesmos princípios de um Currency Board: ele iria emitir austrais estritamente de
acordo com o ingresso de dólares. Para
cada dólar que entrasse no país e fosse para as reservas internacionais, 10.000
austrais seriam emitidos. Para cada
dólar que saísse, 10.000 austrais seriam recolhidos. (Veja o vídeo do anúncio feito por
Cavallo, a partir do minuto 7:37).
Simultaneamente,
o dólar passou a ser aceito como moeda corrente. Os argentinos agora tinham liberdade de
transacionar livremente em dólares, e de livremente trocar austrais por
dólares. Na prática, havia duas moedas
oficiais na Argentina.
No
dia 1º de janeiro de 1992, o austral foi abolido e em seu lugar entrou o peso
conversível. Cada 10.000 austrais foram
convertidos em 1 peso, que valia exatamente 1 dólar.
Pronto,
a reforma monetária estava completa. De
agora em diante, o Banco Central da Argentina se comprometia a trocar peso por
dólar e dólar por peso a uma taxa de 1:1, sem restrições e sem demora. Se os argentinos quisessem manter mais
dólares do que pesos, eles simplesmente trocariam seus pesos por dólares. Similarmente, se quisessem portar mais pesos,
eles trocariam seus dólares por pesos. O
efeito dessa regra era garantir tanto aos residentes quanto aos investidores
estrangeiros que não havia risco nenhum de se utilizar tanto uma moeda quanto outra. Não haveria risco de uma desvalorização
súbita.
Os
argentinos podiam manter contas bancárias tanto em peso quanto em dólares, e os
bancos faziam empréstimos tanto em peso quanto em dólares.
As consequências iniciais
Inicialmente,
tanto o Banco Central argentino quanto o governo seguiram à risca a
ortodoxia. O BC de fato imprimia
dinheiro estritamente de acordo com a variação de reservas internacionais, e o
governo — agora sem poder se utilizar da inflação monetária — reduziu
drasticamente seus déficits.
A
inflação de preços, que havia sido de 1.344% em 1990, caiu para 84%
em 1991, para 17,5%
em 1992, para 7,4%
em 1993, para 3,9%
em 1994, para 1,6%
em 1995 e, de 1996 até o final de 2001, a média
foi de praticamente 0%.
Para
um país que havia se acostumado a ter uma inflação de preços média maior do que
250% de 1970 até 1990, e que havia vivenciado valores de até 20.000% em 1990, a
queda de preços foi extremamente rápida.
Já
o governo conseguiu baixar o
gasto público de 35,6% do PIB em 1989 para 27% do PIB em 1995. Igualmente, o déficit fiscal saiu de 7,6% do
PIB em 1989 para 2,3% em 1990 e, de 1991 até o final de 1994, ficou próximo de
0%.
As
reservas internacionais, por sua vez, que estavam 3,81 bilhões no final de 1989,
foram para 17,93 bilhões ao final de 1994.
O
principal efeito desta política de abolição da inflação e de redução do estado
foi a perceptível queda nos
índices de pobreza. Em outubro de
1989, o percentual de pessoas abaixo da linha de pobreza em Buenos Aires e
adjacências era de 47,3%. Em maio de
1994, tal valor já havia caído para 16,1%.
A crise do México de dezembro de 1994
As
coisas vinham muito bem para a Argentina desde abril de 1991. A economia estava crescendo
robustamente e os preços eram invejavelmente estáveis.
Só
que, em dezembro de 1994, a economia do México — cujo Banco Central adotava um
sistema de câmbio atrelado, no qual a cotação do câmbio era diariamente
manipulada — sofreu um ataque especulativo.
O governo desvalorizou subitamente o peso mexicano. Essa súbita desvalorização gerou pânico nos
investidores ao redor de todo o mundo, os quais, temerosos de terem seus
investimentos desvalorizados, começaram a retirar seus capitais dos países
emergentes. (Esse fenômeno ficou
conhecido como Efeito Tequila, e teve repercussões nos países emergentes, especialmente
no Brasil.)
A
Argentina não ficou imune, e um volume substantivo de capital estrangeiro foi
retirado do país. Os gráficos abaixo
ilustram perfeitamente este momento.
Observe a retração sofrida pela base monetária em 1995. Essa retração ocorre justamente porque pesos
estavam sendo trocados por dólares para ser enviados ao exterior.

Gráfico 4:
evolução da base monetária, 04/1991—12/1995
No
entanto, o M1 e o M2 se alteram muito pouco, quase nada. Isso porque, como os bancos praticam reservas
fracionárias e podem criar moeda do nada, uma retração da base monetária não
significa necessariamente uma redução na quantidade de dinheiro na
economia. Embora as reservas fracionadas
sejam previstas pelo Currency Board (que não se opõe a elas), tal prática pode
gerar grandes distúrbios, pois quanto maior o volume de moeda sem lastro em
reservas internacionais, maiores as chances de um ataque especulativo para se
tentar desvalorizar o câmbio.

Gráfico 5:
evolução do M1 (papel-moeda em poder do público mais depósitos em
conta-corrente), 04/1991—12/1995

Gráfico 6:
evolução do M2 (M1+depósitos a prazo), 04/1991—12/1995
Essa
fuga de capitais gerou um acentuado aumento dos juros no mercado interbancário.

Gráfico 7: juros
do mercado interbancário, 1993-1995
O
crédito encareceu. O país entrou em
recessão e o desemprego subiu. A
recessão diminuiu as receitas tributárias do governo; o aumento do desemprego
aumentou os gastos sociais do governo. A
consequência inevitável desta redução na receita e deste aumento nos gastos foi
que o governo voltou a apresentar déficits orçamentários. E estes nunca mais voltariam a ser zero — o
que significa que sua dívida não mais pararia de subir.
Anos 1996-1999: calmaria no início, pânico
no fim
A
economia permaneceu em recessão durante todo o ano de 1995, mas voltou a se
recuperar em 1996. O problema é que o
desequilíbrio continuou vindo do estado.
Em
janeiro de 1991, quando Cavallo assumiu o Ministério da Economia, a dívida
pública era de US$61,4 bilhões. Em
dezembro de 1995, ela já estava em US$87 bilhões. E em agosto de 1996, quando ele foi
substituído por Roque Fernández, a dívida já estava em US$90,5 bilhões. E terminaria aquele ano em US$97
bilhões.
O
problema do endividamento é que, quanto maior a dívida, maior o volume gasto
com juros. E quanto mais se gasta com
juros, maior é o déficit fiscal. E
quanto maior o déficit fiscal, maior é a emissão de títulos da dívida para
cobrir o déficit, o que aumenta o endividamento e reinicia o ciclo vicioso.
Não
obstante essa explosão do endividamento do governo, a economia seguia estável e
com inflação zero. Após o susto de 1995,
as reservas internacionais já haviam voltado a subir.
No
segundo semestre de 1997, ocorreu a crise asiática, um tsunami que gerou fuga de
capitais ao redor do mundo e súbitas desvalorizações no baht tailandês, no novo
dólar taiwanês, na rúpia indonésia, no ringgit malaio, no won sul-coreano, no
peso filipino e no dólar cingapuriano. O dólar de Hong Kong, que opera
sob um Currency Board, conseguiu manter sua taxa de câmbio intacta. A Argentina, nesta crise específica, sofreu
pouco.
Em
agosto de 1998, a situação começou a ficar ruim. A Rússia entrou em crise financeira e o
governo russo anunciou uma forte desvalorização do rublo seguida de uma
moratória. Adicionalmente, a retomada
dos confrontos na Chechênia e o início de uma nova guerra entre os separatistas
e o governo russo pioraram ainda mais o humor dos investidores estrangeiros,
que ainda estavam abalados pela crise asiática.
Houve uma nova rodada de fuga de capitais. Na Argentina, por causa desta fuga, os juros
do mercado interbancário sobem
e o crédito se torna mais restringido.
Como consequência, o país entra em recessão em setembro de 1998 e o
desemprego aumenta.
A
situação se agrava em 1999. Com a forte
depreciação do real e de várias outras moedas, as importações de produtos
argentinos por estes países caem. Não
bastasse a queda nas exportações argentinas, os preços dos produtos primários também
caem fortemente no mercado mundial. Como
consequência, o setor exportador argentino encolhe.
(No entanto, ao contrário do que é dito, as
importações de produtos estrangeiros pelos argentinos também
diminuem, por causa da recessão. Não
foi um aumento nas importações, portanto, o que atrapalhou as empresas
argentinas).
Para
piorar, os gastos do governo continuam subindo e as receitas, por causa da
recessão, se tornam menores que as de 1998.
A dívida pública vai adquirindo uma proporção de insustentabilidade, já
em US$118
bilhões, o que dava 50% do PIB (era de 29,5% em 1993). Os juros, por causa do endividamento do
governo, continuam em ascensão, assim como o risco-país.
Havia
um temor de que o governo desvalorizasse a moeda para estimular as exportações
e, com isso, melhorar a situação do setor exportador e, de quebra, melhorar as
próprias receitas do governo. Para
conter essas especulações, Menem anunciou que tinha a intenção de dolarizar
forçosamente toda a economia. A
dolarização seria uma maneira de aprofundar o regime de conversibilidade, e
eliminaria totalmente as incertezas acerca do regime de câmbio fixo. Houvesse uma dolarização, os ataques
especulativos contra o peso seriam eliminados.
No
entanto, não houve a dolarização.
Como
1999 era um ano de eleições presidenciais, todos os candidatos (Menem, Fernando
De la Rúa e
Eduardo Duhalde) se puseram a defender o atual regime cambial, jurando que não
tocariam nele, justamente para evitar ataques especulativos.
Em
dezembro de 1999, Fernando De la
Rúa assume a presidência.
Após 10 anos no poder, Menem foi derrubado por causa da economia em
recessão desde setembro 1998 e do desemprego em ascensão.
Com De la Rúa, a tragédia
Anatomia de um caos
No
dia 1º de janeiro de 2000, o governo De la Rúa, por meio do novo Ministro da Economia, José
Luis Machinea, anuncia um pacote fiscal de aumento de impostos. Inicialmente, os impostos incidiriam sobre
ganhos de capital.
Em
março de 2000, no entanto, o estouro da bolha tecnológica nos EUA (das empresas
pontocom) gera nova fuga de capitais, e os juros do mercado interbancário
voltam a subir. Isso agrava a recessão,
reduz as receitas previstas pelo governo e aumentam o déficit fiscal, dando
sequência àquele antigo círculo vicioso: o aumento dos juros aumentava os
gastos do governo com o serviço de sua dívida.
Quanto maior era esse gasto, maior se tornava o déficit fiscal, o que
levava a um aumento do endividamento e a um novo aumento dos gastos com juros.
No
final, o aumento previsto nas receitas não se concretiza, e elas terminam o ano
de 2000 em um valor praticamente idêntico
ao de dois anos atrás.
Tudo
isso aumenta ainda mais as incertezas sobre a capacidade do país de continuar
honrando suas dívidas (boa parte dela nas mãos de credores internacionais) e
sobre sua intenção de continuar no regime de paridade cambial.
Para piorar, em outubro de 2000, o
vice-presidente Carlos Álvarez renuncia ao cargo dizendo não se conformar com o
volume de corrupção que estava acontecendo dentro do governo. Isso desencadeia uma crise institucional,
abalando em definitivo a pouca confiança que ainda restava no regime. Ainda em outubro, os próprios argentinos
começaram a retirar seu dinheiro dos bancos, muitos deles mandando dólares para
fora do país. Naquele mês, 789 milhões
de pesos/dólares foram retirados dos bancos.
Em novembro, mais de 1 bilhão. Os
juros do interbancário disparam. A
confiança havia ruído em definitivo.

Gráfico 8: juros
do mercado interbancário, 1998-2000
Para
conter essa fuga, o FMI anuncia um pacote de empréstimos de US$40 bilhões para
a Argentina repor suas reservas internacionais.
Em troca do pacote, o Fundo pedia corte de gastos e aumento de impostos.
Essa
injeção de dólares conseguiu conter a fuga de depósitos, mas somente até março
de 2001. Logo no início daquele mês, no
dia 2, o Ministro da Economia José Luis Machinea renuncia ao cargo.
No
dia 4, Ricardo López Murphy, economista formado pela Universidade de Chicago, é
nomeado e imediatamente anuncia
seu programa de ajuste fiscal, o qual seria o melhor de todos: não haveria
aumento de impostos, mas sim um profundo corte de gastos de 2 bilhões de pesos,
inclusive para as áreas de saúde e educação.
Haveria também várias privatizações, inclusive da Casa da Moeda.
Obviamente,
o anúncio de medidas tão "drásticas" gerou forte reação popular. Vários membros do governo, contrários à
nomeação de López Murphy, renunciam em protesto às suas medidas. Sem apoio, López Murphy renuncia ao cargo no
dia 19 de março, apenas 15 dias após ter sido nomeado.
Toda
essa baderna faz com que a fuga de depósitos bancários recomece, e agora com
renovada intensidade: apenas em março, mais 5,5 bilhões de pesos/dólares são
sacados dos bancos argentinos, até então a maior saída mensal de dinheiro do
sistema bancário da história do país.
Em simultâneo a tudo isso, o governo determina, contrariamente a como seria um Currency Board tradicional, que o Banco Central poderia comprar títulos do governo e poderia fazer injeções de dinheiro no mercado interbancário. Isso vai totalmente contra o funcionamento de um Currency Board, que não apenas não cria dinheiro para intervir no mercado interbancário, como também só pode ter como ativos títulos denominados na moeda-âncora, e nunca na moeda nacional.
Consequentemente, aumentam as especulações de que o regime de conversibilidade será abandonado e que o peso irá se desvalorizar subitamente. Ato contínuo, a fuga de capital só aumenta.
Desesperado,
Fernando De la Rúa
oferece o cargo de Ministro da Economia a um velho conhecido dos argentinos: no
dia 20 de março, Domingo Cavallo, que agora era considerado o único com alguma autoridade
moral para reconduzir o país à tranquilidade econômica, assume o cargo que
havia abandonado em agosto de 1996.
Sua
primeira medida, anunciada em 21 de março: aumentar as tarifas de importação e
impor uma alíquota sobre transações financeira.
Mas
foi no dia 17 de abril de 2001 que o regime de conversibilidade, o qual o
próprio Cavallo havia ajudado a implantar, sofreu um duro golpe que abalou
fortemente a sua credibilidade. Cavallo
enviou um projeto de lei ao Congresso para alterar a âncora do peso. Em vez de apenas em dólar, a âncora agora
seria em relação a uma cesta formada por dólar e euro, na proporção de 50% para
cada. Neste arranjo, o peso flutuaria
dentro de uma banda definida pelo valor do dólar e do euro. Se o euro estivesse valendo menos que o dólar
(como estava na época), o peso se desvalorizaria até ficar em paridade com o
euro. Se o euro passasse a valer mais
que o dólar, o peso voltaria a ficar em paridade com o dólar. A intenção deste arranjo era o de sempre:
estimular as exportações. (Tal lei viria
a ser promulgada em junho).
Ainda
em abril, o presidente do Banco Central, Pedro Pou, formado em Chicago, que
havia defendido a total dolarização da economia e que estava no cargo desde
agosto de 1996, é substituído por Roque Maccarone, um sujeito tido como mais
"flexível".
Em
junho, o regime de conversibilidade é definitivamente abolido. No dia 15, Cavallo anuncia que, a partir
dali, o governo adotará um regime de câmbio preferencial para as exportações —
o que na prática significava que agora o câmbio teria duas taxas
paralelas. No dia 25 de junho, é
aprovada a lei que altera a âncora cambial para a cesta de dólar e euro.
Ambas
essas medidas eram totalmente contrárias ao funcionamento de um regime de
conversibilidade e à ortodoxia de um Currency Board. As medidas de Cavallo deixaram óbvio que o
governo estava totalmente propenso a alterar o regime de conversibilidade, algo
que poderia ocorrer a qualquer momento.
Vale lembrar que, em 1999, quando também havia incerteza, o governo
Menem havia tomado a decisão contrária: não apenas reafirmou a manutenção do
regime de conversibilidade, como ainda "ameaçou" aprofundá-lo com a
dolarização. Aquela certeza transmitida
fez com que não houvesse fuga de capitais e nem ataques especulativos.
Já
Cavallo, com esse seu ataque arbitrário aos alicerces de regime de
conversibilidade, acabou com a pequena confiança que o governo ainda
usufruía. A consequência desta
intervenção de Cavallo foi restringir ainda mais o mercado de crédito. As taxas de juros para empréstimos feitos em
peso disparam, pois os bancos sabiam que a qualquer momento a moeda poderia ser
desvalorizada. Como consequência, tanto
o governo federal quanto os governos das províncias deixam de conseguir novos
financiamentos junto aos bancos, pois estes já pressentiam que seriam
caloteados.
Em
julho, três agências de classificação de risco reduzem acentuadamente a
classificação da Argentina. O prêmio de
risco se torna 13 pontos percentuais acima dos juros pagos pelos títulos americanos. Os juros no mercado interbancário se
aproximam de 50%. O governo federal não
mais consegue vender títulos de sua dívida no mercado internacional.

Gráfico 9: juros
do mercado interbancário, 01/1999 — 07/2001
Sem
acesso ao mercado de crédito, Cavallo anuncia um plano de déficit zero, o qual não
apenas inclui um aumento da alíquota sobre transações financeiras, como ainda
estipula que, dali em diante, a arrecadação de cada mês será majoritariamente
utilizada para os juros da dívida.
Apenas o que sobrar será utilizado para cobrir os gastos do
governo. Salários e pensões do setor
público são reduzidos em 13%.
Funcionários públicos do alto escalão, que recebiam os maiores salários,
passam a ser pagos apenas em notas promissórias. As greves pipocam pelo país e a fuga de
depósitos bancários não pára.
Em
outubro, há eleições para o Congresso. O
partido de De la Rúa
perde vários assentos e se torna minoria.
Em
novembro, o governo apresenta um plano para fazer um swap — leia-se, adiar o pagamento e renegociar os termos — da
dívida do governo, que já estava em US$132 bilhões de dólares. Temendo agora não apenas a desvalorização
iminente, mas também o colapso do sistema bancário (se o governo desse o calote
na dívida, os bancos detentores de seus títulos quebrariam), os argentinos
fazem uma nova corrida bancária e batem um segundo recorde de saques bancários:
quase 3 bilhões de dólares são retirados dos bancos, especialmente na última
semana de novembro. Como consequência
dessa nova rodada de saques, a liquidez do sistema financeiro — que opera com
reservas fracionadas — desaparece completamente, o que faz com que os juros do
mercado interbancário disparem a níveis sem precedentes (em um determinado dia,
as taxas do interbancário chegaram a 689%). O governo, então, decide impor um limite ao
valor máximo dos juros do interbancário.

Gráfico 10: juros
do mercado interbancário, 1996-2001
O colapso de dezembro de 2001
No
dia 1º de dezembro, um sábado, Cavallo anuncia restrições a saques bancários e
transferências para o exterior. No dia
3, segunda-feira, o corralito entra em vigor. Todas as contas bancárias são congeladas por 12 meses, permitindo o saque de apenas 250 pesos por
semana. A retirada de dólares é totalmente proibida. Operações utilizando cheques e cartões de
crédito e de débito podem ser feitas normalmente (pois elas não retiram
dinheiro do sistema bancário, apenas transferem de um banco para o outro), mas
a ausência de dinheiro físico nas ruas gera sérios e graves distúrbios.
No
dia 5 de dezembro, o FMI anuncia que não mais irá emprestar dinheiro para a
Argentina. O risco país dispara. Uma greve geral ocorre no dia 13 de dezembro.
Furiosos
em decorrência do confisco bancário, que privou a população de seu próprio
dinheiro, e com fome, os argentinos saem às ruas. Entre os dias 16 e 18 de dezembro, ativistas
e manifestantes desempregados exigem que os supermercados distribuam
comida. Perante a negativa, no dia 18 de
dezembro vários supermercados e lojas de conveniência são saqueados em Buenos Aires e
Rosário.
No
dia 19, nova onda de saques em toda a grande Buenos Aires. Além de supermercados, bancos e empresas
estrangeiras, normalmente americanas e europeias, são o alvo predileto. Várias ruas de Buenos Aires são palco de incêndios.
Acuado,
De la Rúa decreta
estado de sítio em rede nacional (veja o vídeo) e avisa que
a Polícia Federal, a Força de Segurança (Gendarmería
Nacional Argentina) e a Prefectura
Naval Argentina serão acionadas para conter a baderna. Alheios às ameaças, os argentinos, logo após
a transmissão do anúncio, marcham rumo à Casa Rosada para protestar batendo
panelas. Este cacerolazo ocorre simultaneamente em várias regiões do país,
mostrando que a população desafiava abertamente o estado de sítio imposto pelo
governo. Na madrugada do dia 20 de
dezembro, após uma manifestação frente à sua residência ser duramente
reprimida, o ministro Domingo Cavallo renuncia ao cargo.
Já
na manhã do dia 20, os manifestantes se concentram na famosa Plaza de Mayo, não
obstante a vigência do estado de sítio.
A Polícia Federal tenta violentamente controlar os protestos. Algum tempo depois, outros grupos de
manifestantes chegam e a situação sai totalmente do controle. O mesmo cenário se repete em vários pontos do
país. Apenas na Plaza de Mayo, cinco
pessoas morrem.
No
final daquele dia, De la Rúa
decide renunciar. Como a Plaza de Mayo
fica diretamente em frente à Casa Rosada, e os confrontos continuavam intensos,
De la Rúa não
pode sair da Casa Rosada de carro. Tem
de fugir de helicóptero. A imprensa do
mundo inteiro registra a humilhante
cena.
No
final do dia, 34 pessoas haviam morrido em todo o país em decorrência dos
confrontos. O presidente interino do
Senado, Ramón Puerta, assume a presidência interina do país até que o Congresso
possa nomear um novo presidente.
Abaixo, uma boa compilação das cenas (Aviso: algumas são fortes)
O trágico ano de 2002
No
dia 23 de dezembro de 2001, Adolfo Rodriguez Saá, governador da província de San Luis, é
nomeado presidente. Seu mandato seria
transitório e deveria durar apenas 3 meses.
Sua
primeira medida é anunciar a moratória total da dívida externa. Tal anúncio é feito sob uma chuva de aplausos
no Congresso. Não obstante, ele decepciona
vários grupos de interesse ao anunciar que a âncora cambial seria mantida. Embora houvesse anunciado que o dinheiro
confiscado dos correntistas seria integralmente liberado, tal promessa não se
concretiza.
Com
apenas uma semana de governo, novos distúrbios e novos panelaços voltam a
acontecer nas ruas de Buenos Aires.
Alguns manifestantes conseguem entrar no Congresso e ateiam fogo em
algumas mobílias. Sem apoio partidário e
cercado de protestos, Saá renuncia no dia 30 de dezembro, tendo permanecido apenas
uma semana no cargo.
No
dia 2 de janeiro, assume a presidência Eduardo Duhalde, que havia disputado e
perdido as eleições presidenciais de 1999.
Assim como Saá, em sua fala inaugural Duhalde garante
que o corralito seria revogado e que
todo o dinheiro seria integralmente devolvido à população. "...
van a ser respetadas las monedas en que fueron pactados originalmente los
depósitos (...) el que depositó dólares recibirá dólares...el que depositó
pesos recibirá pesos."
No
entanto, não apenas o corralito não é
revogado, como ainda é intensificado.
No
dia 6 de janeiro, o regime de conversibilidade é oficialmente revogado. As operações de conversão monetária de 1 peso
para 1 dólar são abolidas. É delegado ao
Executivo o poder de estipular a taxa de câmbio do peso em relação ao dólar e
de regulamentar novos regimes cambiais.
Com
a abolição da âncora cambial, o valor do dólar dispara. No mercado negro, dólares estão sendo
precificados acima de 3 pesos. Mas o
governo opta por estabelecer, arbitrariamente, uma nova taxa de câmbio: 1,40
peso por dólar.
Ao
mesmo tempo, o governo emite outro decreto dizendo que todas as dívidas
privadas, de pessoas físicas e jurídicas, estão de agora em diante 'pesificadas',
só que à taxa de 1:1. Inclusive dívidas
em dólares junto ao sistema bancário.
Para salvar os bancos da bancarrota, uma consequência inevitável desta
manipulação cambial, o governo assume parte dessa dívida. Credores e poupadores são dizimados.
Para
aumentar o ultraje, ocorre em fevereiro a pesificação de todos os depósitos em dólar.
Quem ainda possuía dólares depositados nos bancos vê
seus dólares serem integralmente confiscados pelo governo, que converte todos
os valores em peso à taxa oficial de 1,40 pesos por dólar. Isso é chamado de corralón.
Esta
'pesificação assimétrica', na qual as dívidas com o sistema bancário foram
pesificadas na razão de 1:1 ao passo que os depósitos em moeda estrangeira
foram convertidos na razão de 1,40 pesos por dólar, algo que beneficiava os
bancos, foi uma medida que o próprio governo reconheceu como sendo um bônus
dado aos bancos para compensar o calote gerado pela manipulação cambial acima
descrita.
Em
março, o governo também pesifica toda a dívida pública nacional, provincial e
municipal, à taxa de 1,40 peso por dólar.
Em seguida, ele deixa o câmbio flutuar de maneira um pouco mais livre. Como consequência, o peso afunda. Em junho, a cotação do dólar chega a quase 4 pesos.

Gráfico 11:
evolução do valor do dólar em relação ao peso
Consequentemente,
a inflação de preços, após quase uma década de estabilidade, vai a 40%.

Gráfico 12: taxa
de inflação anual de preços, 2001-2002
A
tragédia agora estava completa. Os
pobres estavam literalmente sem dinheiro.
A classe média não apenas estava com seu dinheiro preso nos bancos, como
também este havia sido forçosamente desvalorizado. Quem tinha depósitos em dólares — e, em
2001, a maioria dos depósitos bancários era
em dólar (47 bilhões de dólares contra 18 bilhões de pesos) — viu sua
poupança ser convertida em peso à taxa de 1,40 peso por dólar, sendo que o câmbio havia ido
para quase 4 pesos. Não bastasse a falta
de dinheiro, a desvalorização cambial fez com que tudo encarecesse, gerando a
inflação de 40%. Todos os importados se
tornaram virtualmente inacessíveis.
Pouco dinheiro e moeda sem nenhum poder de compra.
Inúmeras
empresas faliram. A qualidade de vida da
população despencou. Há relatos de que,
na elegante Calle Florida, famílias
de classe média, cuja poupança de toda uma vida havia sido confiscada pelo
governo, abordavam turistas suplicando por dinheiro. O desespero era grande porque até mesmo a
compra de itens básicos, como leite, estava difícil.
Vários milhares de destituídos e
desempregados se transformaram em cartoneros,
catadores de papel. Estatísticas afirmam
que entre 30 e 40 mil pessoas passaram a revirar as ruas de Buenos Aires à
procura do material.
Ainda
mais impressionante foi a evolução — ou, mais apropriadamente, a involução —
da porcentagem
de pessoas abaixo da linha de pobreza na grande Buenos Aires. Uma cifra que chegou a ser de 16,1% em maio
de 1994 saltou para 54,3% em outubro de 2002, um valor ainda maior do que o do
ano de 1989 (47,3%), quando o país vivia sob hiperinflação. Em nível nacional, a pobreza chegou a 57,5%
da população, a indigência a 27,5% e o desemprego a 21,5%, todos níveis
recordes para o país.
Conclusão
Todo o desenrolar dos fatos deixa bem claro de quem
é a culpa. Qual entidade confisca o dinheiro das pessoas, aniquila toda a
sua poupança e até mesmo estipula quantias máximas a serem utilizadas?
Qual entidade gera incertezas ao se mostrar incapaz de controlar seus gastos e
de se adequar dentro de seu orçamento?
Enquanto o governo foi capaz de manter um orçamento
equilibrado e de seguir ortodoxamente as regras do Currency Board, a qualidade
de vida da população aumentou substantivamente.
A partir do momento em que o governo não mais
conseguiu manter seu orçamento equilibrado (a partir de 1995) e passou a
aumentar sua dívida de forma contínua, gerando incertezas quanto à capacidade
de financiamento e aumentando a propensão a um calote, a confiança no sistema
começou a desaparecer. Não obstante, tudo poderia ter sido revertido caso
o governo houvesse feito a dolarização da economia em 1999. Neste
cenário, seria por definição impossível uma desvalorização e uma fuga de
capitais.
Porém, não apenas não houve a dolarização, como
ainda as poucas características de Currency Board que havia no Banco Central
argentino foram sendo gradualmente eliminadas.
Ao determinar que o Banco Central poderia comprar títulos do governo e
poderia fazer injeções de dinheiro no mercado interbancário — o que ia totalmente
contra ao funcionamento de um Currency Board —, o governo argentino enviou um
claro sinal aos investidores estrangeiros: "Não somos sérios e vamos
desvalorizar a nossa moeda a qualquer momento".
Quando o ministro Cavallo deixou explícita sua
intenção de alterar o regime cambial, o que na prática representou a abolição
do regime de conversibilidade original, a confiança no sistema foi completamente
aniquilada. O colapso era questão de tempo.
O corralito implantado pelo governo
com o intuito de conter a sangria da fuga de capitais e o iminente colapso do
sistema bancário foi o tiro de misericórdia. (O corralito só
viria a ser abolido em dezembro de 2002, mas ainda manteria várias restrições
sobre transações financeiras e aquisição de dólares).
No entanto, vale enfatizar o fato de que, não
obstante o governo tenha destruído seu orçamento, elevado seus gastos,
incorrido em vultosos déficits, se endividado e, no final, tenha adulterado os
fundamentos básicos do Currency Board, tal sistema deu à Argentina, um país que
há muito desconhecia o que era inflação baixa, um período de sete anos
(1995-2001) de inflação praticamente nula, um atestado de sua qualidade.
Veja o gráfico da evolução anual da inflação de
preços. O gráfico começa em abril de 1992, um ano após a introdução do
Currency Board. Note que a âncora cambial é abolida em janeiro de 2002.

Gráfico 13: taxa
de inflação anual, 04/1992—12/2002
Por
fim, este gráfico da evolução do PIB em dólares desde 1970 é bastante
significativo. Ele mostra o que a
estabilidade de preços em conjunto com uma moeda forte podem fazer a uma
economia. Mostra também o que acontece
quando o governo resolve destruir este sistema.

Gráfico 14: PIB
nominal em dólares, 1970-2009
Ao
final de 2009, o PIB em dólares era praticamente o mesmo de 1998, o que
significa que a economia levou 11 anos para voltar ao mesmo nível de onde
estava durante a crise da Rússia.
E toda essa lambança feita pelo governo argentino levaria à ascensão do kirchnerismo, o qual intensificaria a bancarrota do país (ver aqui, aqui e aqui)
O
tamanho do estrago que um governo é capaz de fazer em uma economia é algo que
jamais deve ser subestimado.
Artigo originalmente publicado em 1º de abril de 2013.
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